quatro poemas de Jardel Dias Cavalcanti

o amante do vulcão
(para Susan Sontag)

Tu te sentes atraído pela boca da cratera
A beleza de suas contorções luminosas
A força de sua fumaça cintilante
— buquê mortal alumínio-laranja —
Seus estranhos movimentos
E seu azul-negro de calor
As vestes de uma mulher fatal
Tubos de tinta em explosão
Uma tela de Pollock
Tesouro visual em expansão
Tu te sentes tão atraído
A ponto de se jogar dentro dele.

nada de novo sob o sol

O universo se expandindo
E você chutando sacos de lixo por ruas noturnas
Sua cidade não é um útero confortável
Os bares iluminados cheios de almas penadas
Te desesperam
Mas está tudo certo
Apesar da neblina
A sua noite é “a noite do mundo”
Amanhã o sol voltará
E as notícias dos jornais gritarão
E tantas mortes insanas
Você bebe mais um drink
Acende outro cigarro
Caminha com sua bota de chumbo
Sabendo que cedo o dinheiro te fará correr
E as vozes dos homens que também correm
Soarão como de fantasmas
Nada de novo sob o sol
Só mais um dia para você se desesperar.

ao espelho em Praga

Minhas mãos, reconheço-as e
Minha face é a de um estrangeiro?
Minha boca fala ainda uma língua?
As rugas um mapa de minha alma?
As fotos na parede do hotel são reconhecíveis: Kafka e Rilke
Um belo rosto no cartaz visto através da janela
Anuncia um produto de maquiagem
A noite desce sobre as ruas
Nenhum barulho
“Silêncio!”
Vejo meu reflexo enquadrado no vidro do espelho
Sei que estou pronto para me olhar
E não me reconhecer.

noturno de Praga

O vento gelado persegue um gato sobre o telhado
Palácios dormem
Suas pedras enormes quebraram ombros
Falam da História
Igrejas alçam voo até as nuvens
Mas não abdicam de sua matéria
Como um anjo sem asa
Não me converto ao espírito
As árvores são sombras na escuridão
Mostram caminhos duvidosos
Em silêncio escuto a morte
É uma clareira
Na noite que se inclina sobre mim.

Jardel Dias Cavalcanti é autor dos livros Seis poemas de Praga (Espectro Editorial, 2017); Volúpia e sensibilidade: escritos sobre arte (Scriptum Editora, 2017); Os anarquistas e a questão da moral (Livro Aberto — Xerox do Brasil, 1997). Tem ensaios sobre literatura e arte publicados no Suplemento Literário de MG e revistas acadêmicas. É colunista do site Digestivo Cultural. Professor de História da Arte e Crítica de Arte na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestrado em História da Arte e doutorado pela Unicamp, e pós-doutorado pela UFRJ.