cinco poemas de Cinthia Kriemler

conjunctio

crua a carne que me sacia
vermelha
falo que a boca suga e regurgita em branco
em ânsia, em pressa
crua a carne que me lavra
morna, insone que me adentra e desabita
em riste, em sede
sismo

preservar

eu não te chamarei criança
porque à língua terá sido recusado pronunciar
perfeição
não serei verbo em voz [que do sibilar dos sussurros
brotam sinapses nos vermes que rastejam em excitada
sordidez na lama que defecam]
afastarei da tua luz de lua cheia a larva-
homem que te fareja a formosura
explodirei as bússolas delatoras e pintarei
de piche as janelas do meu abraço
para te fazer eclipse

um dia seremos tudo isso

um dia faremos silêncio
seremos pausa como as coisas gêmeas colocadas
sobre as mesas de centro, sobre as estantes altas em salas
nobres e intocadas. pares perfeitos, banhados pelo sol que escapa
pela fresta da persiana discreta
seremos para sempre mudos
inertes
parelhos e empoeirados como as matrioskas
os elefantes os macacos os candelabros de prata
teremos esquecido como é amar — esse praticar de infinitos
em pequenos gestos
e não saberemos dizer qual foi o instante
em que cessaram riso, abraço, murmúrio ou o toque das nossas
mãos entre as cobertas felpudas, ou os códigos trocados
por nossos olhos treinados em acender vontades
teremos rasgado cartas
e escondido fotos amarelecidas no fundo
das gavetas de uma cômoda velha
e derramado na pia os nossos vidros de perfume prediletos e empurrado
goela abaixo a cumplicidade de uma vodca gelada
seremos choro e choro
: o que escorre sem controle, o que molha só a alma.
um dia seremos tudo isso

hoje é dia de fim, bebê

atrás da primeira porta o leão furioso de Judá rompe
as amarras do livro dos sete selos e arranca de uma vez
sete segredos — quatro cavalos coloridos de fome
guerra, conquista, morte

atrás da segunda porta visões históricas, histéricas de corpos
que definham pútridos jorrando pelos poros
bocas, bundas, falos
trapaças apostas blefes e ranger de dentes

atrás da terceira porta Deus Todo Poderoso
Alá [o Magnânimo], Shiva [o Destruidor] e um astronauta
Imaginário (da intrépida trupe de von Däniken) rosnam mantras, rogam
pragas, profetizam a partilha das 144 mil almas em espólio (Imaculadas)

após o último portal o metal afinado de seis trombetas
improvisa em jam session o final do juízo
e seis sera(fins) bêbados de apocalipse
varrem do salão (com suas asas enormes) cavalos e eleitos

num canto do Nada soa em
silêncio a sétima trombeta

primeiro plano

no útero quente, escuro, olhos-vaga-lumes piscam
em espera que recende pipoca e menta
do parto só sabem a hora em que blanches, olgas
doras serão paridas no ecrã
não sabem que vida é texto enquadrado
por cortes, efeitos
que é sequência de planos, diálogos, de cenas sem
takes perfeitos
não sabem que há estamiras, padmés, gildas
gestando num mesmo instante
misérias, desgraças, dores, personagens
invisíveis em decupagem incessante

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance. 2017); Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos. 2015. Livro semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos. 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). E do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de várias antologias. Escreve para a Revista Samizdat. Tem textos publicados em Mallarmargens, Germina, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos, Revista InComunidade.