metade de mim, de Matheus Arcaro

“Eu não quero levar comigo
a mortalha do amor.” (Chico Buarque)

Então é hoje que tu vens? É hoje que vens dividir os vãos com o mundo? Pelas contrações que sinto desde a madrugada, é provável. Ah, se dependesse só de mim, tuas dores seriam homeopáticas, unicamente pra que soubesses que a vida não é uma propaganda televisiva. Mas não tenho tamanho poder. Em relação a ti, meu papel é o da atriz que prepara a cena pro protagonista encantar a plateia. Quantas conversas tivemos durante o tempo em que eu te fermentava? Agora, amor, é nossa última antes de saíres. Algumas das coisas que te falarei não são muito bonitas, sei que compreenderás. Há tanto tempo ouvindo tua voz silenciosa que conheço tuas apreensões. Bom dia, Brasil. Veja os principais fatos que são notícia hoje. Com os elevados reajustes no último trimestre de 83, muitas pessoas estão deixando de comprar a casa própria. O custo de vida, o custo da vida, viver é muito custoso, li em algum lugar. Não. Viver é nossa única possibilidade. Viver é o que restará a ti assim que eu te arremessar na linha temporal. Eu te condenarei à morte, eis um fato bruto. Talvez por não darem conta desse peso, uns tentem inflar o futuro; outros, maquiar o passado. Mas lembra-te que eu também te condenarei à vida. Te darei o presente. Não, não, tu és meu presente, só isso posso afirmar olhando pro teu quarto decorado de amarelo e pro berço que logo será preenchido com tua existência. Pela primeira vez em anos, o Natal que passou há pouco mais de uma semana não alargou minha alegria. Sim, eu já estava entregue ao teu natal prestes a chegar, filho. Filho? Não sei teu sexo e te chamo assim! Ilustração de como será tua jornada caso sejas Camila. É mais profunda a cicatriz na fêmea, filha amada. Não que uma entidade metafísica fira a mulher antes do nascimento. Ao contrário, nossa carne é talhada ao longo do caminho, às vezes por punhais milenares, afiados constantemente. Pesquisa revela que de 1978 a 1983, o número de mulheres nos cargos executivos das 300 maiores empresas brasileiras, subiu de 4% para 6%. Nem direito a gozar nós temos! Solto isso assim porque ainda não vi teus traços, teu sorriso, tua castidade; acho que não teria coragem de falar olhando pra ti. Eu já cuidei de tantas mulheres surradas pela vida, tantas biografias amassadas por coturnos. Por que, Camila? Por que temos que provar a todo tempo que sabemos dirigir, esquecer ou conversar? Essa visão sobre a mulher impõe-se desde a infância. Mas posso garantir que tu, minha filha, tu não serás uma mini-Amélia. Não ganharás do Papai-Noel panelinhas, espelhos, vassourinhas e bonecas que mijam e cagam quase de verdade. Não terás uma juventude como a minha. Não, eu prometo! Quando te atrasares a voltar pra casa ou quando a professora pintar de vermelho o boletim, não precisarás usar quatro calças grossas pra que os golpes de fio de ferro doam menos; não precisarás namorar um homem com posição social, nem sequer um homem; não precisarás, enfim, saborear a vida pelas beiradas. Veja a seguir, logo após os comerciais: grandes manifestações populares serão organizadas nos próximos dias reivindicando eleições diretas para Presidente… Você é uma mulher do futuro? Então não deixe de conhecer o novo Aspirador de pó Electrolux. Muito mais leve e prático. Modestina disse que, no parto, a gente não sente dor, transforma-se em dor. Isso não me assusta, sabia? Teria medo, isto sim, se eu fosse incapaz de trazer uma vida ao mundo. Talvez seja esta a maior frustração dos homens. Mas há tantas outras compensações, Matheus! Se tu que estás sob a minha casca fores menino, assim que saíres, a sociedade te cobrirá com um manto dourado. Uma capa de superpoderes. Poderes, em grande medida, ilusórios. A capa pode te fazer voar, porém quanto mais alto, mais doída a queda. Nunca me esqueci desse provérbio ensinado pelo meu pai. Papai, que saudade! Queria que conhecesses o Matheus. Que ensinasses a ele que as tramas da história não são costuradas por dedos míopes. Mas há quinze anos, ansioso, foste encontrar nossos antepassados. Ah, me deixou nas mãos da minha mãe; eu, uma menina com apenas dezessete anos. Mãos aptas à crueldade. Mãos que viam meu destino em suas linhas. É impossível deter a tecnologia. Fiat Uno, o carro do futuro. Serás parecido com teu avô, filho. Só que voarás mais longe, tenho certeza. Serás um homem importante, político talvez. Médico, jogador de futebol. Mas antes disso, a vida se mostrará ora iluminada, ora nebulosa, mesmo nas coisas corriqueiras. Com doze anos, por exemplo, vais te masturbar escondido, inclusive de ti. Depois de almoçar na escola, chegarás em casa, trocarás de roupa e, assim que teu irmão dormir, enfiarás a mão no calção até sentir tua carne crescer, não sem antes cobrires as imagens sacras penduradas no teu quarto. Após teu desejo vazar, rezarás fervorosamente e jurarás que não cairás outra vez em tentação. Farás isso até a moral se enrolar numa mortalha dentro de ti. Princesa, já te dei água e comida hoje, o que mais você quer? Falei do teu irmão, não é, amor? Sim, terei outro filho. Não quero que sejas como eu, alguém sem apoio pra escorar os desabamentos da vida. Esse irmão já existiu no meu ventre, verdade. Mas as circunstâncias não eram hospitaleiras, por isso não permiti que a biologia terminasse sua labuta. Não, Matheus, teu pai não está te acariciando através da minha pele estufada. Ele deve estar trabalhando. Aliás, decidi que não o avisarei da tua chegada. Hoje é quinta-feira, se nasceres à noite, como poderei atrapalhar o sagrado dia do futebol? Teu pai! Trinta e nove anos só na crosta. Por dentro, um adolescente. Mas como trabalha! Dez horas por dia desamassando portas, endireitando para-choques, alinhando capôs. Lava a mão pra segurar teu filho, Luiz Carlos! Quando, ternamente, gritarei esta frase? Quando tua avó deixar de crer que uma enfermeira não pode se casar com um homem coberto de graxa? Isso acontecerá algum dia? Possibilidade de ataques nucleares geram protestos por todo o mundo contra a Guerra Fria. Sim, mãe, fiz faculdade, me formei na USP. Só que isso não me faz melhor nem pior que ninguém. Há pessoas que têm lama na alma, destas quero distância. Mãe, desliga a televisão, por favor e traz o radinho que está em cima da cômoda. Say, say, say, what you want, but don’t play games, with my affection. Que decadência, Paul! Gravar com Michel Jackson! Ah, como eu gostava dos Beatles! E do Roberto Carlos. Não, do Roberto ainda gosto, apesar das músicas de Igreja que ele tem feito nos últimos anos. Por que eu não quis saber teu sexo? Porque, seja qual for tua identidade, eu serei tu. Tua existência será minha existência. Mas daqui a trinta ou quarenta anos tu, Camila-Matheus, serás tua mãe ao menos um pouquinho ou me terás como ornamento? Um troféu numa sala empoeirada que, vez por outra, tu limpas e exibes aos amigos? Minha mãe foi uma enfermeira muito respeitada, chefiou o departamento de dermatologia no Hospital das Clínicas. É especialista em feridas e cicatrizes. Ajudou muitas pessoas, até perdeu as contas! E, com um sorriso a saltar do canto da boca, alisarás meus poucos cabelos brancos. Ou nem isso: me jogarás numa dessas casas cujos nomes são casos lapidares de eufemismo “Vovô Feliz”, “Recanto do Vovô”, “Hotel da Melhor Idade” e me visitarás quando a consciência pesar mais que a rotina? Ai, que dor! Mãe, pega um copo d’água, por gentileza. E um analgésico. Mas nenhuma suposição, por mais acinzentada, é capaz de esmaecer o amor que sinto por ti agora. Daqui a poucas horas, verei a luz penetrar nas tuas retinas pela primeira vez, as lágrimas caindo, água salgada que muitas vezes visitará teus lábios. Verei tua pele sendo asseada com o cuidado que as auroras merecem. Te verei sugando de mim tua sobrevivência. Quando tossires, será como se eu nunca tivesse ouvido tosse alguma. Quando ficares febril ou com inflamação na garganta, ficarei ao lado do teu leito como uma santa em oração. Vai deitar, Princesa, não seja desobediente! Mas todos esses pensamentos, todos os desejos que me fazem mais mãe que mulher, podem não abraçar o mundo. Amor, quero que entendas: o que direi agora está além das minhas fronteiras. Presta atenção: talvez tua mãe não esteja no teu primeiro aniversário. Talvez o que conversamos todo este tempo não se concretize. Talvez o verbo não se faça carne. Terei que fazer uma cirurgia pra retirar um cisto no fígado. Um adenoma. Quero te pedir, primeiro, que não deixes esse fato acorrentar teus pés. Quero que andes conforme nosso plano, que deixo escrito no verso das folhas do teu álbum em branco. E, se mudares a rota, que seja pela vontade que brota de ti. Quero que tomes as nossas conversas (todas que gravei, guardo, na gaveta embaixo do teu berço, quarenta fitas cassetes) como ponto de partida, como projetos que podem e devem ser alterados ao longo da obra. Se eu não voltar, ficarás com teu pai. E com tua avó de vez em quando. Serás a mediação entre eles; uma essência capaz de misturar óleo à água. Oh, pedaço de mim, oh, metade arrancada de mim, leva o vulto teu, que a saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto, do filho que já morreu. Não, Chico, o rebento ainda nem se mostrou. A mãe é que pode não cumprir seus desígnios.

| conto do livro Amortalha (Ed. Patuá, 2017). |

Matheus Arcaro é mestrando em filosofia contemporânea pela Unicamp. Pós-graduado em História da Arte. Graduado em Filosofia e também em Comunicação Social. É professor, artista plástico, palestrante e escritor, autor do romance O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016) e dos livros de contos Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017). Também colabora com artigos para vários portais e revistas.