icelônia, de André Balbo

balbo“O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por mudança de hábitos.” (Ulisses, James Joyce)

O Sol ainda não havia nascido. Andava por uma praia erma durante uma antemanhã alvacenta; cravando-me à ourela a cada lance aleatório de passadas, os olhos no indistinguível encontro, amainava a febre dos meus pés na areia molhada.

A Lua recatava-se pejosa, mal se deixando precisar seu contorno em meio à abóboda gris. As nuvens, cirriformes, rarefeitas e longitudinais, riscavam o céu com sutileza aquarelista. O bafejo suave e salgado sussurrava sibilante e acariciava minha fronte úmida, desgrenhando meus cabelos e, de decidido, em seu encontrar-se com meu corpo descobrindo-me nu.

Mas não só de bafejo é o hálito de Éolo, já se sabe bem desde a Teogonia; senhor do sopro, em marcha incessante desriçava a superfície titânica encrespada de Oceano, vertendo-a num espelho imperturbável de jade desbotado, para, no instante seguinte, esfacelá-lo em tropas compridas e ondulares, que, açodando em direção à praia, assaltavam em leques de branca efervescência sobre a areia, exaltando comas de vapor.

De quando em quando, a rebentação ganhava meus pés descalços, sedimentando a meio-termo de unha e carne finos grãos de areia. Numa dessas conjunções, deu por enroscar alguma coisa em meus pés: um filamento verde, de material escamoso e incógnito; de espessura de um quarto de dedo. Tomei-o pela extremidade e puxei-o: houve silêncio e cessou a maré, como interrompida no momento exato de minha tração displicente de curiosa.

Deslizei à frente três passos e provei advir do mar o filamento verde. Recolhi-o com o indicador destro, feito bobina, até que não sobrasse extensão tangente à areia — novo tranco: alguns bons centímetros do fio despontaram da água e, porque me desequilibrasse, quase desabei, inferindo que, à tração imposta, as águas se recolhiam. E assim segui: à proporção que o puxava, eu avançava, entre solene e ansioso, pelo lodo recém-desvelado; depois, percebi que não apenas recuava o mar, como também, a passo e passo, a espessura do filamento ia aumentando. Devia reproduzir a grossura de um antebraço quando meu percurso contava uns oitocentos metros. Sem haver desbordado sequer uma lágrima das axilas, achei que, naquele ritmo, até o pôr do sol poderia abordar o continente mais próximo (a África, sem dúvida, talvez pela Namíbia). Nessa meditação, ocorreu-me que, privadas as águas de ter para onde escoar, a oeste, era possível que não só a Namíbia, mas a África, toda ela, fosse tomada pelo Mar de Atlas que eu empurrava com a força dos meus próprios ombros.

Namíbia: “área onde não há nada.” Um mar de areia imenso — da areia à água, poderia que sim. À mais fugaz especulação destrutora, esbocei um sorriso pravo: senti-me poderoso, senti-me um deus; ao alcance das minhas mãos, o dilúvio. Fui arrebatado da ideação quando, depois de um puxão metódico, desocultou-se do imortal espelho uma massa branca a menos de um metro de mim. Mais umas dezenas de puxões e tirei o véu marítimo ao cadáver de um enorme cachalote, estático, esmarrido, a faltarem-lhe pelo menos três porções, uma à região ventral, as outras ao dorso. Poderoso, etéreo, divino — eu próprio, não o cachalote; eu era maior que Ahab.

Como se picado pela realidade, apreendi com a percepção atardada dos abstraídos que havia coisa fora de lugar. Devia passar de um quilômetro o avanço para dentro do campo desalagado, o filamento já da espessura de coxa adulta bem alimentada, quando caí das calças que não vestia: a Lua havia recuado, ela também, e era duas vezes menor do que antes. Restei extasiado — firmei os pés e, imóvel, com grande força voltei a puxá-lo; a Lua, com efeito, fugia-se à medida que eu arrastava a grossa fibra. As nuvens, antes em cirros rarefeitos, desenhavam-se em cúmulos, em maior densidade e preenchimento. De tão exausto, nos braços, no tronco e no enleio, senti pesar sobre meus ombros a calota do céu e deixei-me cair esticado na areia — densa, úmida, tomada por algas, conchas, crustáceos dos diminutos e pelo mais que pode supor a ciência marinha. De exaustas também as pálpebras, dormitei.

Não sei se o que veio a seguir sonhei ou se de fato aconteceu, mas a verdade é que abri os olhos ao sentir um estranho distúrbio, para com abalo achar sobre mim um céu nebuloso, pouco alumiado por uma Lua de volta à dimensão ordinária, senão um tanto maior. A fibra verde, que durante o cochilo se desarraigara da minha mão, a vi retrosseguir em aceleração pasmosa; com um abraço aflitivo tentei estagná-la debalde. Era como se, do outro lado, um titã (talvez Oceano, ele próprio, com seus abismos profundos) a entesasse e rebocasse, restaurando a desordem que eu aprontara. O mar, inflamado por ventos furiosos, prosperava revolto, as ondas rugindo em minha direção, e eu, despido em um deserto encharcado, achava-me prestes a ser subjugado pela fúria das águas de toda sorte: as da terra e as do céu, que começaram a se precipitar ao tremor de um soturno ronco — eu seria minha própria Namíbia. Divisando o voo de aves negras em direção à praia, chispei de imediato com idêntico destino.

Sob a tempestade, em disparada, arrostando turbilhões de poeira, cruzava o cachalote defunto quando o mar, sem o concurso de freio, começou a lamber-me os tornozelos, até que, eu mais lento de tão exaurido, vestiu-me as débeis panturrilhas; trambequei e rolei até estacar com as costas, a terra agitada em seus fundamentos. Por entre as nuvens em grita, a Lua era três ou quatro vezes maior do que fora pouco antes; imbuída da força de Oceano, Selene rematava sua travessia, celebrizando sua aura gigantesca e em expansão na melancólica casa de Nix, para no ápice de sua autoridade medir e condenar minha alucinação. Recompondo-me, o mar já vencendo meus joelhos erodidos, lancei-me em saltos até que se tornasse impossível arrebatar da água as pernas; detendo uma aspiração salgada, afundei-me até o peito e deixei-me levar pela maré rugiente, na espera de que me expectorasse até a praia.

Uma onda potente derrubou-me com uma sova nas costas, soçobrando-me e fazendo-me ser rebocado sob a lâmina espumante, sem curso ou medida; meus pés, em desesperado agito, resvalaram na areia ao fundo, contato que meu instinto verteu em ânimo de salvação — arrancando do tabuleiro escorregadiço, lancei-me à tona num crawl insano. Singrei à proporção de cinco braçadas até que alguma coisa me enroscasse nos pés. Fui carregado mar adentro por uma força absurda em velocidade estupenda, meus pulmões prenhes de medo, alguma coisa enrodilhando meu tronco, até que comecei a desacelerar. Houve um clarão e o mar foi iluminado em toda sua profundidade; estacionei, aturdido, e abri os olhos para descobrir uma água calma e cristalina que me permitiu distinguir com nitidez: o filamento verde, o mesmo de antes, fora o que se enroscara outra vez em meus pés e me puxara para o abismo distante do mar. Mas que ainda o designasse filamento foi até girar meu corpo: colossal, titânica, a serpente constringia-me; a cabeça tão grande quanto o cachalote desconjuntado, as fossetas profundas, os olhos cobertos por escamas ínvias, amarelas — abeirou-se, magnética, escancarando a mandíbula, fazendo ver dentes enormes e pontiagudos.

| conto do livro Eu queria que este livro tivesse orelhas (Ed. Oito e meio, 2018). |

André Balbo (São Paulo, 1991) é editor da Lavoura. Publicou os livros de contos Eu queria que este livro tivesse orelhas (Ed. Oito e meio, 2018) e Estórias autênticas (Ed. Patuá, 2017). Autor convidado da Flist e da Flipoços, é um dos curadores colaboradores da Casa Philos na Flip 2018. É também revisor, redator e parecerista freelancer, e professor de redação e literatura em diversos cursos. E-mail: balbo008@gmail.com