mar vermelho, de Tito Leite

Cansado dos velhos vícios inventados da minha cidade, resolvi fugir das ruas e dos utensílios do meu apartamento. Uma boa fuga teria que ter Ana comigo. Mas ela está prestes a me largar. Na mesma manhã leio a notícia no jornal: Pânico na ilha! Pensei: Geralmente existem boas fábricas de crise. Isso deve ser algo planejado. Li num portal de notícias que Ozzy Osbourne costumava colocar drogas no sanduíche da esposa, quando ainda eram namorados. Não tive dúvida, dopei Ana e coloquei-a no primeiro navio. Chegamos à tarde, paguei a diária e entrei no quarto. Joguei Ana na cama. Ela já estava acordando, não entendia nada do que estava acontecendo, e eu apenas dizia: Você está sonhando. Ela perguntou com a voz alta: O que está acontecendo? Com toda tranquilidade falei: Calma, amor, estamos numa ilha longe de toda aquela loucura, só eu e você. Ela me olhou com estranheza (para não dizer asco), começou a gritar e saiu do hotel em busca do primeiro navio. A última vez que se comportou assim foi quando o nosso gato foi atropelado. Confesso que o meu coração ficou estreito quando sentiu o ódio que saltava dos olhos dela. Quando colocou o pé na calçada, quase foi atropelada por pessoas fugindo de forma desordenada (lembravam até o Estado de Sítio, de Albert Camus). Que cena surreal. A multidão subia e descia pelas ladeiras da ilha. Ela retornou assustada. O que está acontecendo? É a crise, amor, esse povo tá em crise e por isso foi tão fácil e barato o acesso para cá. Veste esse vestido vermelho. Lá fora tudo está para explodir e que se dane tudo isso, você é o meu lar. Ela começou a berrar novamente e tentou sair, mas se assustou com a multidão que subia e descia. Trancou-se no quarto e chorava. Eu de fora querendo entrar para vê-la com o vestido vermelho. Fui para a varanda, acendi um cigarro e fiquei olhando a turba agitada. Quando não se acredita no amanhã, o sol brilha como uma bola de chumbo. No final da tarde, ninguém sabia por que estava correndo. Todos corriam, corriam e corriam; era a crise. De qualquer forma, comecei a desconfiar do próprio ar e comprei uma máscara de gás. Tentei novamente entrar no quarto, mas Ana não escutava. Falei: Ou abre ou derrubarei a porta. O recepcionista avisou: Se fizer isso chamo a polícia. Eu respondi: Os policiais estão em pânico e as pessoas nesse hotel também. Ok — ele disse — vai fundo, mas só não bate na mulher porque isso é coisa de bandido. Derrubei a porta, mas que dor horrível, desloquei a porra do braço. Pelo menos meu amorzinho riu pela primeira vez naquela tarde caótica. Fui para a recepção em busca de um remédio para anestesiar a dor, mas não tinha ninguém. Sentei novamente na varanda com meu braço deslocado e fiquei assistindo ao desespero daquela gente. Tomando uísque, fumando e escutando The Piper at the Gates of Dawn, do Pink Floyd, fiquei pensando se a loucura não foi o preço que Syd Barret pagou pela genialidade daquele álbum. Foi quando, para minha desgraça, ao longe avistei Ana em seu vestido vermelho; estava próxima do cais. Ela parecia estar com o recepcionista. Entrei no quarto em desespero, com o coração fora do lugar. Entrei e vi a mala toda revirada, sem suas roupas e meus cartões. Saí pelas ruas, fazendo parte da massa desesperada, em crise. Já era tarde, apenas a avistei sumindo com aquele vestido vermelho no mar. Mar vermelho é a cor da casa que caiu.

Tito Leite nasceu em Aurora-CE (1980). É poeta e monge, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Têm poemas publicados nas revistas Mallarmargens, Germina e na portuguesa TriploV. Digitais do caos (selo Edith, 2016) é o seu primeiro livro.