você pode escrever sobre o canto dos pássaros.
você pode escrever sobre a última chuva do ano.
você pode escrever sobre o casal que viu brigando na esquina minutos antes da meia-noite.
você pode escrever sobre o cão assustado com os fogos de fim de ano que acabou pulando de uma janela do quinto andar.
você pode escrever sobre a mulher espancada pelo marido duas quadras da tua casa que cansou da vida e fugiu uma semana antes do Natal e ninguém sabe onde é que ela foi parar e tá todo mundo aqui na vila comentando.
você pode escrever sobre a criança desaparecida daquela reportagem que você viu enquanto esperava na fila do açougue torcendo pra que sobre alguma carne boa na tua vez porque você deixou pra ir no mercado no último dia na véspera do feriado e você sempre faz isso e diz pra si mesmo que na próxima não vou deixar tudo pra última hora sem perceber o quão idiota é essa tua preocupação pq pelo menos você tem tempo e dinheiro.
você pode escrever sobre o homem-bomba que explodiu dentro de um ônibus e matou trinta e sete pessoas lá do outro lado do mundo ou sobre a bomba que atingiu uma maternidade e o teu vizinho comentando esse povo merece tudo isso porque toda essa desgraça é culpa deles e da religião que não é igual a nossa porque lá eles não acreditam em Jesus Cristo, cê sabia?
você pode escrever sobre os que foram bater panela com camiseta da CBF e agora estão quietos como se nada tivesse acontecendo porque na realidade pra eles poucas coisas vão mudar pelo menos agora a princípio e dá até pra trocar de carro nesse começo de ano esse negócio de crise e desemprego é papo furado só não trabalha quem não quer veja bem se eu te mostrar os relatórios lá da empresa vai ver que não tá tão ruim assim na verdade até deu uma melhorada em relação ao tempo daquela anta da Dilma* mas viu agora mudando de assunto e a viagem pra Europa? (*escrevi esse trecho em dezembro de 2017, e olha só, hoje o caos ainda é maior o preço da gasolina ainda é maior, será que agora eles ainda vão viajar para Europa? Será?)
você pode escrever sobre os índios sendo massacrados no Amazonas mas você nem sabia que ainda existia índio no Brasil né? a não ser aqueles que hora ou outra você vê no centro da cidade vendendo balaio bala doce pedindo dinheiro aqueles com as roupas sujas e as caras sujas aqueles que tão sempre andando tudo junto geralmente uma mulher gorda e mais quatro ou cinco crianças todas magras porque diabos ter tanto filho meu Deus ? e tem uns que até tentam ganhar dinheiro de forma honesta esses dias mesmo eu vi um tocando um negócio que parecia uma flauta e vendendo CD’s lá no centro no calçadão e a música até que não era ruim mas eu fiquei pensando quem é que vai parar e comprar um CD de um índio? quem diabos compra CD hoje em dia? é mais fácil vender bala e balaio é mais fácil pedir dinheiro tem gente que dá eu não dou mas tem gente que dá agora CD de música ninguém mais usa e ninguém escuta música de índio.
você pode escrever sobre o presidente golpista e todo um governo podre que ri do povo se fodendo mas que sempre nos anos de eleição dá aquela disfarçada e tem político que desce nas vilas e vai conversar com o povo pra saber o que tão precisando e nesse final de ano até carta eu recebi do George o vereador do povo gente como a gente e vou até ficar esperto que hora ou outra ele pode me chamar pra um dos churrascos que sempre rola em ano de eleição aposto que o George não deixa pra comprar carne na última hora na verdade acho que ele nem deve enfrentar fila nos mercados.
você pode escrever sobre a redução do salário dos professores e do povo que acha que professor já ganha demais ou sobre o governador Beto Richa que falou na entrevista que se o salário não tá bom é só não se inscrever no processo seletivo afinal é opcional se você não quiser não precisa fazer é simples é fácil não tem porque estressar.
você pode escrever sobre os mendigos, as putas, os bandidos e os favelados e quando você tiver escrito sobre tudo isso você vai repetir e vai escrever de novo e de novo e de novo e quem sabe você morra fazendo isso e nunca realmente tenha escrito algo que preste algo que funcione algo que atravesse você mesmo e te transforme e que em algum momento possa fazer isso com um outro.
e se você levar sorte e se você além de escrever ler e viver a vida (e ler vivendo a vida) você perceba que o problema da tua escrita sempre foi esse “sobre” o “sobre” é o que te fode e é o que fode a maioria daqueles que escrevem.
o “sobre” é uma grande prisão e é extremamente difícil deixar de escrever “sobre”
é muito fácil olhar o outro de longe é muito fácil escrever na própria pele.
escrever na própria pele é sempre um escrever sobre. sempre uma ponte para si mesmo.
abandonar o sobre deve ser o movimento mais importante esse é o grande objetivo deixar o “sobre” diluir o teu ponto de vista romper a própria pele e transformar a escrita (e a vida e a vida-escrita) numa grande travessia num caminhar nômade numa eterna metamorfose para o fora.
abandonar o sobre é abandonar o EU é dissolver o corpo dissolver tua própria língua teu jeito de falar teu jeito de pensar é caminhar em direção ao limite e cuspir as palavras naquele entre-lugar no limiar da vida e da morte e andar na corda bamba sempre buscando um novo limite pois há sempre como chegar mais perto do abismo há sempre como avançar mais e dar aquela olhadinha antes que tudo exploda há sempre como voltar-se um pouco mais para o Caos.
e assim você em vez de escrever sobre o canto dos pássaros quem sabe uma hora dessas você não acaba abrindo a janela e depois os ouvidos e aí fecha os olhos e deixa o mundo entrar e deixa-se ser o próprio canto mesmo que ainda não seja isso — completamente?
Felipe Teodoro (1993 — Ponta Grossa/PR) tem textos publicados em diversas antologias nacionais, participou das revistas literárias Gueto, Literatura & Fechadura, Ruído Manifesto e Vacatussa. Seu primeiro livro Onde Os Pássaros Cantam Doentes (Editora Fractal) tem lançamento previsto para o segundo semestre de 2018. Contato: felipets9@hotmail.com.