a moça da janela, de Dani Bastos

No pequeno vilarejo de Pontezinha, localizado na região do litoral sul do Estado de Pernambuco, morava uma moça chamada Margarida, cujo passatempo era passar várias horas do dia debruçada na janela observando a vida das pessoas. A casa onde morava com os pais e mais cinco irmãos mais novos, era grande e se localizava bem na rua principal. Assim que o dia amanhecia e seu pai saía para trabalhar, ela abria a janela e assumia seu posto.

Sabia de cor a rotina dos habitantes da pequenina cidade. O primeiro que passava todos os dias era o velho que vendia leite em grandes tonéis de alumínio trazidos numa carroça puxada por um boi. Em seguida, aparecia o homem que comercializava pão de porta em porta, puxando seu jumento selado com dois balaios de vime bem carregados. Na sequência, vinham os trabalhadores da fábrica de pólvora passando com seus passos lentos e despojados, rindo alto das anedotas que contavam. Vez por outra, avistava o bêbado com suas roupas sujas e amarrotadas, trespassando as pernas e tropicando os passos, falando coisas ininteligíveis com um companheiro imaginário. Ainda com bastante sono, bocejando, as crianças caminhavam em direção à escola com livros e cadernos debaixo do braço. O menino que vendia laranjas e castanha de caju assada em saquinhos passava saltitante em direção a estação do trem.

E assim ficava acompanhando o vai e vem dos moradores da localidade até sua mãe a chamar para ajudar nas tarefas domésticas, varrer a casa, arrumar as camas, guardar as roupas, fazer o almoço. O que ela fazia muito a contragosto, de cara emburrada, tudo mal feito e às pressas para poder voltar o quanto antes para a janela.

Sua mãe alertava que aquele hábito não era bom.

— Margarida, menina! Olha! Presta atenção! A curiosidade matou o gato!

Mas não adiantava. As palavras de sua mãe, entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Ela dava de ombros, fazia um muxoxo e não dava a mínima atenção. Já era mais que um hábito, era uma mania, um verdadeiro vício. Afinal de contas, o que havia de errado em ficar olhando a vida do povo pela janela?

Depois de lavar e guardar a louça do almoço, Margarida se prostrava novamente na janela e via quando as mulheres voltavam do rio que ficava próximo carregando pesadas trouxas de roupas e latas d’água na cabeça, enquanto embalavam crianças de colo. O homem que vendia doces de sabores variados — coco, caju, amendoim, banana — em um tabuleiro que caminhava em direção ao largo situado em frente à igreja cujo badalar do sino ditava o ritmo dos passos das beatas com véus rendados cobrindo a cabeça e terço na mão atendendo ao chamado para a missa do final da tarde. Meninas que brincavam animadas de pular corda. E ficava acompanhando esse cotidiano até quase o momento do sol se pôr.

E novamente sua mãe a chamava para colocar a mesa para o jantar pois o pai não tardava a chegar do trabalho e não ia gostar nada de encontrá-la na janela bisbilhotando a vida alheia. Após a ceia, não havia possibilidade de ir para a janela. Não somente porque o pai se encontrava em casa, mas também porque não havia luz elétrica e os moradores da localidade costumavam se recolher cedo, logo depois do sol se pôr, exceto em noite de lua cheia, quando os vizinhos colocavam cadeiras na frente das casas e ficavam contando casos e rememorando histórias enquanto as crianças brincavam de roda.

Certa vez, próximo a meia-noite, ela acordou com ruídos de passos próximos à rua em que ficava sua casa. Abriu os olhos na escuridão e ficou atenta. Ouvia uns lamentos, gemidos, murmúrios e algo que lembrava um choro muito baixinho. Será que estava sonhando? Sentou na cama devagar e apurou ainda mais os ouvidos. O som aumentava gradativamente. Seu primeiro impulso foi o de ir à janela para saciar a curiosidade, mas recobrando a razão, conteve-se. Teve receio de acordar os irmãos e principalmente o pai. Se ele a flagrasse na janela àquela hora da noite, com toda certeza ia levar uma surra daquelas que não lhe permitiriam sentar durante vários dias.

Mas totalmente dominada e transtornada pela curiosidade que lhe carcomia as vísceras, afastou o lençol com o qual se cobria, levantou sem fazer barulho para não acordar os pais e os irmãos e foi devagarinho, na pontinha dos pés, caminhando para a sala, guiada apenas pela trêmula chama que vinha do candeeiro a querosene do qual saía uma fumaça escura e um cheiro forte de óleo queimado e bem lentamente abriu o ferrolho da janela para espiar o que ou quem produzia aquele burburinho. Pela pequena fresta, colocou apenas um dos olhos e viu se aproximando pela rua principal uma espécie de cortejo no qual as pessoas vinham arrastando os passos, como se estivessem deslizando.

Quem seriam? E naquele horário? Abriu um pouco mais a janela para que pudesse colocar o rosto todo e usar os dois olhos e viu que as pessoas trajavam roupas brancas. Uns seguravam velas compridas nas mãos e outros carregavam flores. Mas que engraçado! Não reconhecia ninguém. Nem os operários da fábrica, tampouco as lavadeiras, sequer as carolas da igreja! Continuava sem identificar quem eram aqueles caminhantes, o que aguçou violentamente o seu interesse.

Escancarou totalmente a portinhola e encostou a parte superior do tronco no parapeito da janela igual como fazia durante o dia para poder melhor visualizar e distinguir quem eram aqueles que vinham caminhando pela rua aquela hora da madrugada.

O volume das vozes aumentava proporcionalmente à aproximação da esquisita comitiva, mas não conseguia compreender o que falavam. Esticando o corpo, conseguiu perceber que as pessoas que estavam no centro do cortejo seguravam alguma coisa.

Se suspendeu na janela com a ajuda dos braços para poder enxergar melhor. E nisso, a procissão vestida de branco chegou bem a frente a sua casa. Quando um dos transeuntes olhou em sua direção, sentiu toda sua espinha endurecer e congelar; era um vulto sem rosto! No lugar dos olhos, do nariz e da boca o espectro tinha buracos negros. Tomada inteiramente pelo pavor e por calafrios, com os olhos muito arregalados, mas sem conseguir parar de fitar o espectro, reconheceu que o objeto que os vultos carregavam era um caixão de defunto e numa mistura de pânico e mórbida indiscrição, possuída pelo desejo de saber quem foi que tinha morrido, olhou para dentro do ataúde e viu a si própria, com o rosto pálido, braços cruzados e coberta de pequeninas flores.

Sua mãe a achou no outro dia caída no chão. E daquele dia em diante, a moça nunca mais abriu a janela.

Dani Bastos tem licenciatura em Educação física e especialização em Etnomusicologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente cursa Direito na Uninassau. É escritora e tem dois livros publicados: Coco de Umbigada: cultura popular como ferramenta de transformação social e Matriarcado e Fé: a história de Mãe Fátima de Oxum.