É uma dor filha da puta mentir para si mesma da hora que se acorda à hora que se dorme. Acordar calada todas as manhãs com essa certeza, ir trabalhar com essa angústia, voltar semi-morta do trabalho para uma segunda jornada com esse engulo, e a porta da casa é como a capa de um livro que revela verdades. A minha casa é este livro. Enquanto leio as linhas, meu filho cresce como uma couve-flor. Ele não pede licença, apenas se esparrama, molécula à esquerda, célula à direita, escavando o espaço a pernadas. Todo seu universo é meu útero, um órgão gasto que observa a outra criança que corre pela sala a consumir seus primeiros anos de vida, que é uma laranja azeda da qual temos de extrair o suco até o caroço se possível. Meus filhos, o que quer nascer e o que nasceu, sequer desconfiam disso, na gratificação da inocência infantil. Gastei metade da minha vida casando e tendo filhos, sem que soubesse bem por quê. Vou gastar a outra metade reclamando do pai dos meus filhos que não participa do cotidiano deles, porque refez sua vida e a outra mulher prefere que ele cuide dos filhos dela e do filho deles, que ela também aguarda, três meses depois do nascimento do meu. Mas isso não está certo. Não pelas crianças, mas porque eu também tenho direito a uma vida. Porque eu não fiz nada, só a comida do almoço, a roupa lavada, as crianças limpas, o beijo de boa-noite. Mas parece que isso não foi o bastante. Porque foram lá nos meus sonhos e disseram que isso não era o bastante. Porque foram lá e disseram que o formulário de minhas certezas estaria incompleto. Porque foram lá e me mandaram voltar à fila do desgosto. A esta altura do campeonato. Porque foram lá e disseram que as minhas necessidades foram atualizadas. É uma dor filha da puta sentir esta dor filha da puta que vem com a sensação filha da puta de que não se pode fazer nada. Não, não são os meninos. Não, não foi ele ir embora. Ele ir embora só me fez me dar conta desta dor, que estava escondida ali, embolada entre a conta de luz e a do colégio das crianças. Essa dor que julga irrelevante um dia a mais ou a menos sobre a superfície do planeta. Essa dor que eu como todo dia com o pão do desgosto amanhecido, antes de me atrasar de novo para o trabalho.
Nesse dia em que o calor tornou-se insuportável, bem no meio de dezembro, um dia entre os sete meses de gravidez e os dois anos de idade, ela soube que era chegada a hora. Voltando da praia, soltou a mão esquerda do filho da direita da sua e, com cuidado maternal, mediu pé ante pé até chegar a seu quarto. Olhou com atenção cada centímetro daquele cômodo conjugal. Achou-o absurdo e recolheu tudo que lhe parecia combustível o suficiente para uma grande fogueira, pela qual com certeza responderia judicialmente depois. Esgueirou-se em frente à cômoda para pegar a tesoura que escondia do menino. Mediu a distância uma, duas, três vezes, até fincá-la bem fundo sobre o seio esquerdo. Fustigou bem fundo na carne a ferramenta, até que a tesoura batesse forte sobre uma estrutura metálica dura. Com muito esforço, que lhe custaram lágrimas sentidas, arrancou de lá aquela esfera sólida, compacta, espinhenta, que lhe envergava o espírito. Aquela pelota de metal fundido nunca mais lhe atrapalharia.
O quadrante superior do seio estava em frangalhos, mas logo estaria bem, assim como ela. Tomou um banho, durante o qual sussurrava “Eu sou…”, completando a tempos a frase. Refaria, acordaria ao longo dos seus próximos dias de vida e refaria. Vestiu-se e foi rever o filho, que dormia com um sorriso leve no rosto.
| publicado no livro FLUP — Narrativas curtas (Casa da Palavra, 2016) e ligeiramente modificado para esta edição da revista. |
Juliana Berlim é licenciada em Letras (Português-Alemão) pela UFRJ e Letras (Português-Francês) pela UERJ. Mestre em Ciência da Literatura (Semiologia) pela UFRJ. Professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Membro do corpo docente da pós-graduação “Ererebá — Educação das Relações étnico-raciais no Ensino Básico” no mesmo colégio. Publicações recentes: texto em alemão sobre a cidade de Leipzig na coletânea Mein Ort in Deutschland, editora alemã Hueber (2016); contos nas coletâneas Narrativas curtas da FLUP (Festa Literária das Periferias, cidade do Rio de Janeiro), pela editora Casa da Palavra (2016), e-book (a sair); conto selecionado para a coletânea de textos As cidades e os desejos, Selo Editorial Aliás, 2018; co-organizadora de coletânea de artigos sobre a transexualidade e o travestismo na literatura, a sair em 2018 pela editora Oficina Raquel.