cinco poemas de Ludmila Rodrigues

domingo

também estou com saudade dela, frida
eu digo triste
com uma resignação própria de quem sabe
que cachorros não entendem língua de gente
é fim de tarde, eu fumo na janela
trago seu bilhete nas mãos
que diz fique calma, tudo é passageiro e ainda podemos
morar numa casa com piso de madeira etc.
já reli vinte vezes
e ainda não consegui compreender nada
exceto a parte de que tudo é passageiro
penso numa casa com o piso de madeira
vejo a cidade de cima
tá tudo dourado
e ninguém percebe que eu grito

maldição

eu passei a minha vida inteira
rindo sem vontade
de tudo que homens falavam
aceitando impertinências
e tentando, a qualquer custo
ser palatável a suas goelas frágeis
minha vida inteira pedindo desculpas
pelo que quer que fosse
e sentindo o estômago embrulhar
por nunca ser boa o suficiente
eu passei minha vida inteira tentando
caber no que haviam planejado
rompendo contratos, jogando roupas pela janela
tendo crises intempestivas dentro do carro
em movimento
dormindo ao lado de monstros tenebrosos
ou contando as folhas secas do chão
por sempre estar de cabeça baixa
e eu não me lembro de ter atinado
em nenhum momento
para o fato de que as coisas absolutamente
não precisavam ser daquele jeito
hoje, de um lugar calmo e quieto
eu passo noites inteiras tentando
suportar acordada
a tortura de rever minha vida nessa espécie
de filme maldito
que teima em me exibir
agonizante
durante anos a fio
sufocada do lado de dentro
da minha própria pele

sputnik 2

o que será que a gente pensa
quando planeja um ano inteiro num bloco de papel
faz xis no calendário
quando tem insônia e afaga o cachorro
quando toma café pra ficar acordada depois da madrugada?
o que a gente pensa
quando comemora nossos aniversários
compra livros, faz listas
estipula metas?
e quando para de comer carne, o que a gente pensa?
o que será que a gente pensa, por deus
quando lamenta o suicídio alheio
e jamais admite que um atropelo em plena quarta-feira
também pode ser chamado de salvação?
quem nós pensamos que somos
quando dizemos que buscamos vida em outros cantos do universo
mas na verdade o que buscamos são pessoas como nós?
ou quando mandamos a outros planetas
cachorros, cadeiras, bonecos e aparelhos com informações
sobre nós mesmos
para que daqui a um bilhão de anos alguém saiba quem éramos
do que gostávamos e que música ouvíamos?
quando a gente olha pro céu e vê bilhões de pontos brilhantes de luz
num azul-marinho quase preto
é aterrador como nem assim a gente percebe
que nossos caminhos são tão extremamente desimportantes
tão diminutos quanto essa formiga que, agora, no parapeito de mármore
luta contra uma piscina de água do tamanho de uma moeda
essa formiga que eu só consigo ver porque estou bem do lado da janela

namorada

uma vez conheci uma mulher
que me fazia rir de coisas inimagináveis
para minha natureza indolente
como por exemplo
o cu de um gato
gargalhávamos na cama enquanto o gato descansava apático
nos azulejos frios embora fosse verão
não conseguíamos olhar para o gato
porque desmanchávamos e nos contorcíamos na cama
perdíamos o ar e enfim respirávamos fundo
vencidas
mas isso foi há muito tempo
dentro de um quarto com paredes verdes
que ficava parecendo um grande aquário de peixes
quando entravam as primeiras fendas de luz
da manhã

o corvo

já faz muito tempo
que existe um pequeno corvo no meu ventre
não sei como ele se instalou tão firme
em um corpo ainda jovem e quente
um dia simplesmente estava lá
e desde então se alimenta do meu sangue
e da minha força
enquanto convalesço calada
com os olhos trincados e as pálpebras frias
sem entender muito bem
o que ele faz aqui e por que eu
por que minhas vísceras e não outras
por que meu sangue e não outro
quando ele bate as asas dentro de mim
e perfura minhas entranhas com seu bico fino
eu me aquieto e deixo que ele se alimente
(embora doa um pouco
depois do corvo quase tudo me é indiferente)
ele me faz acumular papéis não lidos
cancelar encontros
e não querer lavar os cabelos
(não importa se o sol está escaldante)
repito, ele não é grande
mas é inexplicavelmente forte
e parece pesar uma tonelada
mesmo quando só repousa

Ludmila Rodrigues é formada em Letras pela Universidade Federal da Bahia e mora em Salvador. Publicou os livros O rosto na xícara e Minha cabeça já não comporta tantos antigamentes e mantém o blog http://medium.com/@ludmilardgs.