Preâmbulo
Numa noite imóvel
A lua branca era um ponto raro de esperança na noite tão escura. A água da chuva ainda se acomodava pelo asfalto e refletia a claridade em milhares de migalhas líquidas. Era uma cidade grande, dessas com estações de trem, chafarizes e teatros. Fazia frio e o vento fraco não movia nem o que havia de muito leve. Àquela hora, instaurava-se um vazio profundo e espaçoso. O silêncio era um rei tirano. Edifícios e monumentos pesavam indiferentes sobre a terra. As ruas úmidas eram um deserto. Nenhum passo, som ou respiração. A neutralidade havia se imposto ao tempo e parecia ter suprimido qualquer ação, qualquer presença. Parecia que tudo tinha ido embora e aberto espaço para o nada. A ausência se dilatava e deslocava lenta no contorno de uma carícia sobre cada centímetro da superfície da cidade.
De uma das ruas brotava uma fenda entre blocos de concreto: um beco estreito e escuro. Um labirinto tão objetivo que, se alguém decidisse explorá-lo, teria como sentença o retorno sobre os próprios passos. A certa altura da noite imóvel, a luz da lua lambeu o breu e revelou, ao longe, na extremidade do beco, um homem deitado no chão. Do negrume, a claridade desenterrou lentamente as pontas de um corpo abandonado ao próprio peso.
O homem dormia imóvel como a noite.
Alguém que decidisse se aproximar, passo após passo, beco adentro, veria de perto, sobre os ângulos daquela carcaça, o depósito de uma grossa crosta de sujeira. Na pele, feridas abertas e sangue; sobre ela, o acúmulo de suor e poeira; sob as unhas, como terra cavoucada, uma matéria compacta e escura. O cabelo era uma massa disforme, embolada com sebo; e, pela barba, catarro, saliva e restos de algo que serviu de alimento. As vestes gastas estavam sujas pelo que vinha de dentro e pelo de fora. Uma aura pesada cheirava o azedume da imundice humana, mistura apurada de suor, secreções, excreções e hálito. Muito tempo e matéria tinham se sobreposto e sedimentado sobre o corpo e essas camadas, por apego e hábito, já eram parte do que era o homem.
O olhar que enfim chegasse ao fim do beco e, disposto a uma aproximação maior, assumiria o ponto de vista dos parasitas que habitavam o seu corpo. Bem de perto, aderido ao visco da sujeira, o olhar curioso teria uma revelação: a aparente imobilidade daquela noite era uma farsa. Pelo corpo, músculos se contraíam, cavando vales. Depois, relaxavam. Artérias mais superficiais elevavam ondas na pele enquanto bombeavam o sangue. O caminho do ar ampliava e diminuía o volume do tórax. O coração batia. Havia correntes elétricas. O corpo pulsava numa dança mínima. Em meio a tanta imobilidade, até mesmo das horas, nem tudo estava perdido. Um compasso constante e sereno embalava o sono. Havia calma e constância.
Num repente, como numa erupção e sem motivo, algo muda: o corpo encrespa; a respiração acelera; o coração bomba impetuoso, soca o peito; o sangue engrossa, a circulação não flui, há atrito; há esforço; o tórax infla, puxa mais ar e murcha em sopros rápidos; há calor, o suor verte; o corpo lateja num ritmo de esquizofrenia; oscilações incoerentes descompassam expansões e contrações, sístoles e diástoles; tudo se torna abrupto. Na tentativa de conter os impulsos por dentro, o invólucro do corpo se enrijece, aperta e empedra. A explosão teria sido um caminho mais fácil. O romper latente passa a transfigurar as formas do corpo. A nuca se espreme e arqueia o pescoço para trás; a boca abre numa fresta; língua, palato e garganta, úmidos de saliva sentem o ar que entra seco e sai em sons manchados; os poros se alargam e a casca dura da pele vira uma membrana fina. Os pelos levantam e repuxam incontáveis pequeníssimos cumes; o tato se amplifica e a pele sente o toque do ar, da sujeira, o arranhão da fibra dos tecidos, a umidade áspera do chão; os olhos se reviram, as pálpebras batem como asas de um inseto; o sexo endurece; os punhos cerram com força e as unhas afundam na pele das palmas das mãos; na face, uma carranca se contrai por dor e negação; a saliva abunda, espuma e escorre pelas laterais da boca. Espasmos contorcem a musculatura, contraindo, retendo tensão até afrouxarem quase à morte; o peito se afunda e os ombros fecham; as escápulas se abrem para, em seguida, juntarem-se apertando a musculatura das costas; a coluna arqueia reabrindo o peito ao ponto de rompê-lo. É preciso mais ar; o ventre oscila entre idas e vindas até que se contrai, repuxa o quadril em direção ao estômago e condensa todas as pulsões num núcleo, na potência de uma concentração atômica; a matéria do corpo se força a uma levitação tesa; o homem todo se comprime e rejeita o chão, recusa a gravidade num esforço por se elevar, descolar, desprender, até que o cérebro pesa num escuro profundo.
A queda.
O gozo imaculado.
Toda tensão finalmente se esvai, derrama-se púbis abaixo, rolando a pelve como uma bacia que emborca. O corpo transborda. Do meio da escuridão, um gole de claridade. Na matéria, o tremor do êxtase. A linha de pele, que até então separava o dentro e o fora, desmantela-se. Limites se dissolvem e o que é do homem se mistura ao que é do mundo. Uma comunhão: o ar da noite perpassa fibras, tecidos e ossos do corpo aberto; o essencial do homem desliza e escorre pelas dobras da matéria da noite. Homem e noite deixam rastros um no outro.
Entre borrões de contrações e arrepios, o corpo lentamente assossega e acomoda. Ondas amaciam pedaços da carne. O que antes se espremia afrouxa, o que explodiria abranda e, pouco a pouco, a quietude interpõe seus véus.
O fluido derramado escorre na pele e fica impresso como uma camada a mais de matéria. Findados os fatos, a lua seguiria seus passos e entregaria o beco de volta ao breu. Tudo passa. O homem dormiria por milênios. Inspiraria como um lobo que uiva para dentro. Expiraria, entregue e frágil. A arbitrariedade do tempo se interporia à escuridão e o infinito ganharia espaço até que o amanhecer viesse matar a noite. Apesar do homem, essa derradeira paz seria o mais próximo que a noite enfim chegaria da tão virtuosa imobilidade.
| primeiro capítulo da novela Epilepsia — uma fábula (Folhas de Relva Edições, 2018). |
Samuel Kavalerski é bailarino, coreógrafo e artista visual. Epilepsia — uma fábula é seu primeiro livro. Dirigiu “Céu de Espelhos”, projeto vencedor do 20º Cultura Inglesa Festival, dividindo a criação e a cena com a bailarina argentina Irupé Sarmiento. O espetáculo rendeu-lhes uma indicação ao prêmio de melhor interpretação da APCA. Foi professor, coreógrafo e ensaiador do Corpo Jovem da Escola de Dança do Theatro Municipal de São Paulo. Foi solista da São Paulo Cia. de Dança, integrou o elenco da Quasar Cia de Dança, de Goiânia, e o Balé Teatro Guaíra, de Curitiba. É graduado em Artes Visuais com Ênfase em Computação pela Universidade Tuiuti do Paraná e tem desenvolvido trabalhos que integram as diferentes linguagens artísticas: dança, artes visuais, teatro e, agora, a literatura.