três poemas do livro ‘corvos contra a noite’, de Diego Vinhas

outra cidade invisível

quando se chega pelas estradas afluentes, demora-se a perceber quando ela começa, pois sua relação com a ruína é circular: a cidade está sempre sendo desativada e reinaugurada. mas os processos se espalham simultaneamente em seu tecido social, como cânceres rivais ou crianças em uma gincana paranoica. seu nome parece ter sido de uma fortificação, mas talvez o nome também fora desabitado, tangido para um outro bairro distante e em seu lugar um outro nome mais moderno e lucrativo (que rende muitos empregos temporários) foi apresentado em uma grande festa de inauguração. quem sabe a cidade agora se chame Aquário ou Viaduto ou Mormaço. as construções, por sua vez, não demoram a sentir o fantasma obsoleto à espreita, e nem as ruínas envelhecem em paz, pois alguém quer sempre lhes comprar um novo rosto. há quem argumente que uma crise bipolar entre praia e sertão explique esta guerra intestina, ou que tanta luz, o ano inteiro, acabe por desbotar cores do pensamento (e que alguns povos do mar e povos do mangue sejam, também eles, cores se apagando). não há por lá dia sem festa, muitos visitantes, corpos vendidos, corpos desovados. na vertigem entre os movimentos de demolir e edificar, seus habitantes parecem tomados de um jet lag permanente, de terem nascidos na década errada (para o futuro ou passado). alguns, mais desajustados, repetem, em ares de conspiração, um mantra silencioso: o melhor da cidade é o céu, e também acreditam que, vista de algum lugar afastado, ela é na verdade um grande deserto. mas tudo é especulação, ó grande Gengis Khan, já que se eu, Marco Polo, estiver contaminado pela alma volante do lugar, minha lembrança da cidade pode estar em obras ou abandonada, sem nunca se saber ao certo – a certeza, porém, é que as pessoas ali desembocam qualquer conversa em risos. eles devem ter muito medo, já que riem tanto.

pertenças

o sal da terra. a terra do nunca. o bico do corvo. o fio da navalha. a navalha de Occam. o ouro do tolo. o sexo dos anjos. o anjo da História. o amigo da onça. o mistério da fé. a palavra da salvação. o discurso do ódio. a paz de Westfália. o som do silêncio. o barqueiro do Aqueronte. a alma do negócio. a escola das facas. o silêncio dos inocentes. o livro do ponto. o sinal dos tempos. o x da questão. a efígie da moeda. o nome da rosa. a era dos extremos. as meninas dos olhos. o olho da rua. a rua da amargura. o dobre dos sinos. a roda da fortuna. a arte da guerra. a guerra dos mundos. a vitória de Pirro. o circo dos horrores. a cinza das horas. o país do futuro. o cu do mundo. o pau da obra. a garota do Fantástico. o sul do paraíso. o sono dos justos. o Cristo da parede. a ressurreição dos mortos. o conto do vigário. o capitão-do-mato. o senhor das moscas. o hino de Duran. o rato da Disney. a febre do rato. o fantasma da máquina. a escolha de Sofia. a zona do crepúsculo. o rés do chão. a teoria do caos. a alegoria da caverna. as brechas da lei. a lei do cão. a cova dos leões. o cordeiro de Deus. a oficina do diabo. the number of the beast. o efeito da borboleta. o canto do cisne. a mosca da sopa. o touro de Wall Street. os escravos de Jó. o fim da picada. o boca do Inferno. a música das esferas. a fome do abismo. o lance dos dados. a fuga do tema. o leite da pedra. o contra-ataque do império. o império dos sentidos. a moral das bombas. o fio da meada. o boi das piranhas. a extensão do dano. o ingênuo da raça. a bacia das almas. as botas de Judas. a mão do mercado. a bucha do canhão. os ossos do ofício. os cantos de Maldoror. a espada de Dâmocles. a casa de Usher. o Vale do Silício. a duração do deserto. o avesso do avesso. a nudez do rei. o outono do patriarca. os homens de Atenas. a tradição da família. os filhos da puta. as chuteiras da pátria.

da ciência jurídica

desentranhado do clássico
“O Homem Delinquente”
de Cesare Lombroso

os dementes morais são infelizes com a demência no sangue, contraída no ato da concepção; nutrida no seio materno. nasceram para cultivar o mal e para cometê-lo. da união dessas almas perversas brota um fermento maligno que faz ressaltar as tendências selvagens (…) os miolos são predispostos por má nutrição desde o nascimento, e depois neles se radica e cresce uma daquelas mil tendências mórbidas que se manifestam em quase todos nós numa má hora do dia (…) impedir a conjunção fecunda dos alcoólatras e dos criminosos seria pois a única prevenção do delinquente nato, que, quando é tal, nunca se mostra suscetível de cura. (…) se se pudesse extrair uma média da potência intelectual dos delinquentes com a segurança com que se obtém da medida do crânio, encontrar-se-ia uma média inferior ao normal. (…) os caracteres do homem criminoso: mandíbulas volumosas, assimetria facial, orelhas desiguais, falta de barba nos homens, fisionomia viril nas mulheres, ângulo facial baixo. (…). não falta a preguiça para o trabalho nos dementes morais, em contraste com a atividade exagerada nas orgias e no mal. a mendicidade e a vadiagem são a vocação deles. (…) a aversão ao trabalho é uma caraterística também das prostitutas; nove entre dez nada fazem durante o dia(…). não se pode identificar a atenção delas; não se pode conseguir que façam um raciocínio longo (…) . as prostitutas têm um amor que as distingue das mulheres normais. são apaixonadas pela dança. pelas flores e pelo jogo. são dadas ao tribalismo. (…) . não há, penso, selvagem que não seja mais ou menos tatuado (…) o lugar da tatuagem, e sobretudo o número, provam a vaidade instintiva que é característica no criminoso. (…). todos os amores anômalos e monstruosos, como quase todas as tendências criminosas, têm princípio na primeira idade. (…) a crueldade é, de fato, um dos caracteres mais comuns do menino (…). foi um menino que inventou a gaiola de junco, a ratoeira, a rede para borboletas, e mil outros engenhos de destruição (…). acredita-se há muito tempo que os delinquentes sejam todos irreligiosos, pois que a religião parece ser o freio mais potente dos delitos. (…) N. R., de imaginação quente, amava a beleza, mas desdenhava Deus. aos 9 anos, as excessivas masturbações provocaram inchaço na vulva. experimentou as chicotadas, mas estas a tornaram estúpida, falsa e feia, sem proveito. (…) Vasco, com 19 anos, matou uma família inteira: “creio que agora verão meus colegas da escola se eram justos quando diziam que eu jamais seria alguma coisa na vida” (…) por uma aguardente, um negro selvagem vende não só os compatriotas, mas até a mulher e os filhos. (…) os ciganos, embora industriosos, são sempre pobres, porque não gostam de trabalhar (…). parece constante a reincidência nas mulheres. na América as moças dadas à delinquência são muito mais incorrigíveis do que os rapazes (…) . veremos nas mulheres, porém, inclinação para males domésticos (…) um ladrão milanês me disse: “e, além do mais, não roubam os advogados, os negociantes? porque só a mim acusam e não a eles?” (…) as primeiras formas de penas legalizadas foram duelos ou batalhas contra um culpado presumido como se nota nos animais: rixas de um ou de poucos, transformadas depois em rituais jurídicos.(…) foi só do dano geral causado pela prepotência de poucos que deve ter nascido a primeira ideia da justiça e da lei . (…) pode-se concluir que a moralidade e a pena nasceram, em grande parte, do crime (…).quem poderá saber quantas sentenças terão sido provocadas pela gula, pelo apetite por um bife humano?

| os poemas aqui reunidos são inéditos e integram o livro Corvos contra a noite, no prelo. |

Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980 e publicou os livros de poemas Primeiro as coisas morrem (7Letras, 2004) e Nenhum nome onde morar (7Letras, 2014).