três poemas de Leonardo Chioda

secessão

hoje acordei tão forte
e bem feito para o mundo
em dia com a ausência
e presente
à luz do acaso
tão futuro e passado à limpo em folha de ouro
repleto de água e sombra fresca

que hoje acordei bem colocado
como um quadro de Klimt
na rua mais clara de Damasco

queda

não pare o mundo que eu não quero descer
mas se for pra descer
que seja ao mais claro fosso
em que os ratos dançam e dominam o mundo
por baixo e por entre

e bem amputado o rabo da esperança
o mundo não para
ainda que eu desça à obra
mansa e rasgada que é o meu canto
sobreposto ao nervo
sobretudo ao tutano do braço apoiado à mesa

e se é para descer
que seja ao recesso mais puro
rente ao inferno
que de tão mal dito o tempo
eu esteja bem disposto
a cair ao centro
de um abismo do tamanho do meu país

lá embaixo
morto e nu
com os ossos escritos
envolto em sangue
sobre a bandeira verde
dou adeus com a boa mão esquerda

não pare nem o mundo
nem o fundo
que agora o poema sobe
e como ninguém é insubstituível
no meu lugar
alguma coisa acende
e se vinga

eu sei que hoje uma nova figura se alumia

zen
para Thich Nhat Hanh

posso morrer hoje
como morrem uma abelha depois de picar a criança
como vibra por dentro a xícara
tão esquecida sobre a pilha de livros de poemas
no silêncio da manhã

morrer sem pressa
enquanto morrem a louça, o papel, as abelhas
e a criança, tão alérgica
na cor da parede

morrer de morte corrida
sabendo que bebo [como um bom budista]
a grande alta nuvem de bilhões e bilhões
que hoje é a minha cerveja

posso morrer como se uma fagulha no vento
ou quando se morre uma estrela
— o mesmo brilho de qualquer fogo & o mesmo breu
que acende a ursa maior

morrer é verbo irregular
transitável como a favela, as canas ou o jardim imperial
dito hoje reto
em bom tom:
morrer pela alta costura do acaso
soltas as linhas e desfeito o pacto
no gerúndio
pela agulha de repente

da vida nunca se leva nada
mas a vida que se leva
é sempre o dia certo para morrer
por isso o mundo não espera [aprendi com os monges]:
até segunda ordem, o mundo fica
ele todo se equivalendo para que não acabe
— e tudo nele tão bem pensado
para que caiba a morte num ferrão

supremo poder de poder morrer hoje
— único objeto da minha atenção
sobre a maneira certa de se espalhar no universo
de morrer talvez à maneira cega
[derradeiramente] e tão à vontade

ainda assim posso, flexionado, mover o corpo
como quem dá meia volta
contra uma parede
encaminhado para o fim
e estudar a parede
como se estudasse a origem de tudo
— entrar inteiro nela
como quem torna a ser feto
[de fato]
e tão perto dos bilhões e bilhões:
ser a parte toda de uma parede
até que morrer
seja ser por toda a parte

para morrer escolho o verbo estar com eles
[os bons motivos], um de cada vez
sem pressa
com toda a tensão de quem vem a este mundo
para vibrar no momento mais propício
desde sempre

se posso morrer hoje,
então como vivo este último dia da minha vida?

Leonardo Chioda (Jaboticabal, 1986) é um escritor italo-brasileiro. Graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista, também estudou literatura, história do teatro e língua italiana na Università degli Studi di Perugia e na Università Ca’Foscari de Veneza. Atualmente é aluno de mestrado em poéticas de expressão portuguesa na Universidade de São Paulo. Escreveu Tempestardes (Editora Patuá, 2013) e POTNIΛ (Selo Demônio Negro + Hedra, 2017), apresentado na 15ª edição da Flip — Festa Literária Internacional de Paraty.