três poemas do livro ‘os gigantes atravessam o eufrates’, de Geovanne Otavio Ursulino

geovannemaafa

há muito tempo disse
pro senhor arkaikea
q algo profundo mudou em nós
somos o q somos

dizia o senhor arkaikea
mas eu sentia na pele
nos olhos nariz boca orelhas
sentia em cada fio de cabelo

q algo profundo mudou em nós
quando entramos naquele barco
nem quando torramos
no sol conseguimos

mostrar pro senhor arkaikea
q algo profundo mudou em nós
eu sentia em cada osso
nosso nome foi esquecido

nossa língua se perdeu
quando entramos naquele barco
sentia em cada fio de cabelo
mas o senhor arkaikea

não dizia nada além de
somos o q somos
por isso chegando aqui
falamos nossa língua

como não tivesse se perdido
adoramos nossos deuses
como não tivessem nos deixado
dizíamos uns pros outros

somos o q somos
como dizia o senhor arkaikea
mas nada trazia harmonia
pra nenhum de nós

q vivemos como bestas
q dormimos como bestas
q comemos como bestas
nem morrendo como bestas

conseguimos mostrar
pro senhor arkaikea
q algo profundo mudou em nós
quando entramos naquele barco

sinto na pele nos olhos
nariz boca orelhas
sinto em cada osso
em cada fio de cabelo

mas continuamos vivendo
comendo dormindo falando
como se não tivéssemos
entrado naquele barco

como se não tivéssemos
esquecido nosso nome
como se não tivéssemos
perdido nossa língua

há muito tempo disse
pro senhor arkaikea
mas aprendemos a repetir
somos o q somos

o nome de todas as coisas

quando o céu foi separado da terra
quando a terra foi separada do céu
quando o nome de todas as coisas
foi determinado

parecia q tudo era harmonia
pairando sobre as águas
doces salgadas frias quentes
parecia q não existiam mistérios

quando o céu foi separado da terra
construímos nossas casas
construímos nossas cidades
todas as coisas cada vez maiores

plantamos nossos grãos
criamos nosso gado
fundimos nossos metais
parecia q tudo era harmonia

protegidos por nossos deuses
rios senhores protegidos
por todo lado protegidos
de todas as coisas

engordamos mais q o gado
plantamos mais do q comemos
dormimos mais do q precisamos
bebemos mais do q podemos

esquecemos q
quando o céu foi separado da terra
quando o nome de todas as coisas
foi determinado

tantos nomes se perderam
sentamos nas praças
ouvimos poemas no anoitecer
olhando as águas do grande rio

parecia q tudo era harmonia
olhando pralém do horizonte
pra onde nunca fomos
de onde ninguém nunca voltou

esquecemos q
quando a terra foi separada do céu
quando o nome de todas as coisas
foi determinado

recebemos o nome de servo
pra servir os senhores
q nos deram nosso nome
mas engordamos mais q o gado

plantamos nossos grãos
construímos nossas cidades
fundimos nossos metais
bebemos mais do q podemos

sentados nas praças
olhando pralém do horizonte
olhando as águas do grande rio
avistamos as imensas bestas

vindas de onde ninguém nunca voltou
parecia q não existiam mistérios
mas nossos senhores
q nos deram nosso nome

nos fizeram lembrar q
quando o nome de todas as coisas
foi determinado
recebemos o nome de servo

o garum de pompeia

é processo demorado
q diz de nós aquilo q somos
mesmo quando o chão treme
mesmo quando o chão afunda

encontrar atum fresco
é a primeira parte
tudo se aproveita
vísceras couro espinhas

em grandes vasos virgens
de cerâmica q só nós fazemos
juntamos ao atum fresco
água do mar azeite ou vinho

tampamos os vasos levamos
pras encostas do vesúvio
q a cada dia tremem mais
q a cada dia são mais quentes

por meses os vasos
fermentam sob o sol
q só brilha nessas terras
q só nasce em nosso céu

é processo demorado
q diz de nós aquilo q somos
depois de meses fermentando
esprememos tudo

quebramos os vasos
q serviram seu destino
em pequenos vasos virgens
de cerâmica q só nós fazemos

juntamos o primeiro líquido
devidamente salgado
mesmo quando o chão treme
mesmo quando o chão afunda

juntamos o primeiro líquido
devidamente apimentado
é processo demorado
o melhor molho do império

dizem os q provam
com pão e alho
o melhor molho do império
dizem os q provam

com carne de borrego
com muita salsa e vinho
mesmo quando o chão treme
mesmo quando o chão afunda

porq só com o atum dessa bahia
pode preparar nosso molho
porq só nossa cerâmica
pode abrigar nosso molho

devidamente salgado
devidamente apimentado
é processo demorado
q diz de nós aquilo q somos

porq só o calor e o tremor
cada vez maiores das encostas
do vesúvio podem preparar
o melhor molho do império

| o lançamento será na segunda metade do mês de maio | no espaço cultural La Rosa Mossoró, em Maceió, no bairro do Jaraguá. |

Geovanne Otavio Ursulino vive em Maceió. Historiador. Editor da revista Alagunas. Publica no blog Amorfo Poema. Publicou o livro de poemas como num inferno pra marinheiros (Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2017) e, agora, os gigantes atravessam o eufrates (São Paulo: Editora Patuá, 2018). Contato: ursulino@alagunas.com.