― Que bom que você conseguiu estudar, filha, a mãe teve que trabalhar para ajudar a vó a sustentar os mais novos, o safado do seu avô meteu o pé na estrada, nos abandonou, até hoje não sei se ele está vivo ou morto, mas não faz mais diferença, eu tô velha, os irmãos se perderam pelo mundo, mãe morreu, um pouco foi desgosto, não foi só aquela doença, eu sei que não.
Dona Soraia é boazinha, sempre mandou as roupas boas dos meninos que não serviam mais pra vocês, economizei muito com você e com seu irmão por causa dela, cê precisa ver, sou quase da família tenho até copo, prato e talheres só para mim.
― A senhora está cansada, mãe, devia ficar em casa, o que ganho não é muito, mas dá pra gente viver. Se lembra do sacrifício, das provações que passamos para eu terminar a faculdade? Graças a Deus passei naquele concurso, o momento foi abençoado. Já saímos do aluguel, esta casinha não é a que eu queria, mas tá bom, como a senhora diz: Não reclama de barriga cheia!
― Eu só tô indo lá, duas vezes por semana, se eu ficar sem fazer nada, aqui dentro, fico doida. Filha, seu pai era homem bom, mas a mania de jogar apostando dinheiro arruinou com ele, alguns dizem que ele estava trapaceando, mas o homem era irmão de bandido, não deixou barato, você era pequena, não atinava para as coisas, ele estava chegando do trabalho, uma obra de bacana, lá no centro, o homem só chamou: Altino. Quando ele virou, foi um tiro certeiro no peito, seguido de outros quatro pra confirmar a maldade, não deu tempo nem de tentar socorrer, eu chorei tanto em cima do corpo, não sabia que tinha tanta lágrima dentro de mim, ele não ouviu o grito que dei, não se mexeu mais, nem pra reclamar como sempre fazia.
― Para! Não é bom lembrar-se disso, minha mãe. Parece que pra gente é tudo mais difícil. Quando eu era pequena, a gente ia ao mercado, o segurança sempre ficava nos olhando, eu abestada, achava que ele queria ser nosso amigo, mas não, a senhora disse que ele fazia isso por conta da cor da nossa pele, como se a história que as freiras contavam para a senhora, quando era uma menininha do primário, fosse verdade, não chegamos ao rio para clarear a pele porque éramos preguiçosos, o rio não existe, nunca existiu, somos forte, descendentes de gente brava, gente que aguentou tanto sofrimento e ainda encontrou energia para inventar alguma alegria.
― Filha, você está bem? Não adianta esconder, eu vi na tevê, a polícia jogou gás e bomba em você e nos seus colegas. Eles te machucaram? Eu já disse que você não deve se envolver nessas anarquias, já não basta seu pai que me deixou só, seu irmão com aquele jeito estranho que não me fala nada da vida dele, mas anda bebendo demais, que eu nem sei, se acontece algo com você, não quero pensar no que vou fazer.
― Eu estou bem, foi incômodo cheirar o gás, tinha gente com criança, pessoas mais velhas, mas passou, o que não pode passar é esta lei. Gente rica quer que o povo pague a conta dos desmandos deles, não, isso não é justo, eu tenho que lutar, olha o absurdo, mãe! Não estou pedindo nada mais do que ganho, só não quero perder uma parte do meu pouco, como é que vou pagar as prestações dessa casa, se me tirarem R$1,00?
― A vida é assim, menina, quem tem manda e quem não tem obedece, parece que tá te faltando juízo. Você não viu aquela moça morta no Rio de Janeiro?
― Com todo respeito, Dona Eunice.
― Não gosto que fale assim comigo!
― Me desculpa! Mãe, não vou arredar o pé da frente daquele prédio, até que o prefeito e alguns vereadores tirem esta ideia absurda de descontar mais dinheiro do meu salário. Ouvi dizer que os bancos e outras empresas devem um bocado de dinheiro para a prefeitura, por que não cobram deles?
― Esses livros não fizeram bem pra sua cabeça, bem que sua vó dizia: quem estuda demais, acaba ficando doido. Você tá falando coisa sem noção, menina! Maldita hora que fui falar aquele negócio de estudar pra ter uma vida melhor! Eu sempre ouvi dona Soraia falando isso pros meninos dela, achei que era bom e comecei a repetir para você e pro seu irmão.
― Talvez, esta tenha sido a única coisa boa que ela nos deu.
Fernando Rocha da Silva é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor na rede municipal de São Paulo, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento), da novela Os laços da fita (Editora Penalux) e do livro de crônicas Afetos (Editora Penalux). Tem um conto na antologia Descontos de fadas (Alink Editora). Possui textos publicados em Mallarmagens, Diversos e afins, Incomunidade, Musa Rara e Letras Inacabadas.