Ela andava numa fase difícil, a vida estava estagnada, nada dava certo. Uma amiga sugeriu: ‘É quebranto. Vai ver um pai de santo’. Passou o contato do WhatsApp do ‘Pai Antônio’ para ela. ‘Sempre vou nele, é muito bom’. O tal pai não podia atender, estava com conjuntivite. Ela queria uma recomendação, tinha pressa. Ele compartilhou os contatos do ‘Pai Vivo’ e ‘Pai Oi’. ‘Jogam búzios muito bem’. O celular dela era Vivo. Marcou com o ‘Pai Vivo’, que se chamava Pai Toninho. Ele estava disponível. ‘Se quiser vir hoje, estou aqui até às 15h’. Passou o endereço. Era no fim do mundo. Como teria chegado ali sem Google Maps?
De repente se viu numa rua de terra batida, com poças de água barrenta. Uma moça da Aldeota no Conjunto Palmeiras, bem vestida e exótica, portando um chapelão, de pantacu, tamancos dourados e uma blusa de estampa tropical. Excentricidades do signo de aquário. Não havia um só veículo na rua. Desceu do carro um pouco ansiosa, respirando rápido. Podia ser assaltada. De repente lhe ocorreu: ‘quem vai assaltar cliente de pai de santo? Pode dar um azar desgraçado’. Afinal, ele era certamente conhecido na região. Respeitado.
Um rapaz esquálido usando um boné ao contrário abriu o portão de ferro branco, com a pintura descascada e um molequinho de uns seis anos, descalço, pulando ao lado dele. Disse que entrasse. Foi entrando na casa úmida, escura, cheia de estatuetas estranhas. Um diabo alaranjado, uma sereia loura, máscaras africanas, Santa Bárbara entre várias outras estátuas religiosas. Dois outros rapazolas sem camisa assistiam tevê num sofá baixinho, suburbano, vintage até. Lembrou que sua avó tinha um parecido em casa. Um sofá estilo anos setenta, pensou.
Pai Toninho apareceu vestindo trajes africanos comprados provavelmente no mercado central. Pediu que o seguisse até uma pequena sala. Sentaram numa pequena mesa quadrada, coberta com uma toalha plastificada com estampa de frutas. Ele abriu uma agenda velha e empoeirada. Perguntou o nome completo dela para jogar os búzios. Tomou nota na agenda com um lápis com borracha na ponta. Ela percebeu que ele escreveu o sobrenome dela, Peçanha, com ‘s’. Em Portugal talvez. Camilo Pessanha.
— Meu sobrenome está errado. É com cê cedilha. Não vá errar meu orixá.
— Hã?
— Cê cedilha.
Ele parou meio apalermado, com o lápis na mão.
— Como assim?
— Aquele cê com o rabinho em baixo.
— Valha! Eu tô mobral, mobral.
Deu uma risada, se explicou:
— Eu sou do tempo do mobral.
Então jogou os búzios numa tábua pequenina de madeira, interessantíssima, talhada com motivos indígenas. Disse que ela era filha de Iansã com Iemanjá, mas Oxalá apontava um bloqueio, causado pelo encosto de um falecido.
— Desgraçado!
— A criança é muito guerreira, e ajuda todo mundo. Já era para ter conseguido bem mais na vida. Você é boa demais, criança, cuidado. Oxalá fala aqui de muitos obstáculos, é obra deste encosto.
— Acho que sei quem é. Pois quero um banho para afastar este encosto. Ajuda?
— Certo. Ajuda sim.
— Quanto custa?
— Mais cem reais, tirando o jogo.
— Tudo bem.
— Agora pode perguntar o que quiser.
Queria saber de um certo elemento, não falecido, vivíssimo, um eterno encosto em sua vida, de efeito bumerangue. Ia e voltava.
— Olha os búzios aqui dizem que era para vocês estarem juntos. Ele tem ainda muito sentimento. Isso foi obra duma cretina.
— Cretina? Isso é a visão patriarcal.
— Patri o que criança?
(No Brasil até os pais de santo são patriarcais)
— Eu digo, cretino é ele. Ninguém o obrigou a ficar com ela.
Pai Toninho deu uma risada baixinha e ficou calado. Ela lembrou dos selfies diários da cretina para obter curtidas de adoração dos seguidores, quase todos homens. Selfies de costas mostrando o rabo e dando uma olhada insinuante para trás, provocações de ‘mulher poderosa’. E competitiva. Esses tontos patriarcais adoram uma periguete narcisista.
— De certa forma, há uma figura cretina sim. Você tem razão.
— Mas ele ainda tem muito sentimento por você. Podem ainda ficar juntos.
— Oxalá me livre deste sentimento. Deixo ele para a cretina. Para sempre. Posso perguntar de outro?
— Sim.
— Diga o nome e pense nele.
(…)
— Ih esse é muito sensual. Número sete. Muito bom de cama.
— Sim…
— Mas olhe não se meta com ele, criança. Ele é perigoso. Tem várias cretinas. Você pode acabar na delegacia. Coisa de revolver ou faca.
— Ai ai. Deixa quieto. Tô correndo longe de cretinos e cretinas.
— A criança é muito bonita e muito olhada. Mas tá com a ‘áurea’ gasta. Ninguém chega junto. Um banho pode ajudar.
— Quanto custa?
— Mais cem reais. Não é obrigatório.
— Certo.
— Olhe Oxalá diz para ter cuidado também com roubos. A criança é muito distraída. Pode ser assaltada.
Pensou consigo mesmo ‘quase todo mundo nessa cidade já foi’. E ‘isto aqui vai me sair caro’.
— E as amizades?
— Vejo aqui muita inveja em volta da criança. Cuidado com as cretinas do Feicebuqui. O que eu pego aqui de macumba virtual!
— Pode crer!
E assim foi. A conta saiu cara. Muita macumba, encosto, muito mau-olhado acumulado. Saiu de lá dirigindo pela Messejana profunda, uma viagem antropológica pela mais brasileira das profissões, carregando umas garrafinhas de descarrego no banco de trás. Tinha um biquíni no carro, seguiu no sentido da Praia do Futuro, encontrou uma barraca afastada, e tomou primeiro um banho de mar para tirar o ‘caé’. Depois tomou os banhos. Um tinha cheiro de amoníaco misturado com cachaça. O último exalava um cheiro de óleo mineral misturado com ervas e essências baratas. O corpo amoleceu. Parece que o quebranto estava se dissipando. Então foi ficando sonolenta e adormeceu profundamente, sonhando com um amor novo, com um futuro melhor, com outro país.
Virna Teixeira é poeta, tradutora e médica de profissão. Tem livros publicados no Brasil, Portugal, Argentina e México. Vive em Londres, onde edita livros de poesia brasileira contemporânea pela Carnaval Press. Sua última coleção de poemas, Suite 136 (Demônio Negro, 2017) retrata sua experiência trabalhando com pacientes psiquiátricos na Inglaterra. Recentemente começou a escrever micronarrativas e contos.