Ele acordou em sua antiga casa, onde morara durante sua vida inteira. Os sentidos embotados por um misto de ressaca e sono, como quando se desperta sem se deixar, de todo, de sonhar. Olhou o quarto e sentiu-se mais estranho que quando retornara, dias atrás, tendo passado o tempo e os eventos que lhe fizeram outra pessoa. Pensou que fosse aquele quarto uma replicata de seu quarto anterior, pensou que fosse a cidade inteira uma replicata de sua cidade anterior. A mulher que dormia ao seu lado, ao menos, era de todo uma estranha, e por a conhecer tão pouco, era o único componente familiar daquele cenário, e sentiu-se grato, porque assim não era ele uma replicata de seu eu anterior.
A claridade era invasiva e não lhe permitiu voltar a dormir. Pensou na ironia que é refugiar-se das sensações no sono — em como só se pode dormir de fato para escapar da apatia, que é quando não se precisa dormir. A insônia, irmã siamesa da angústia, insuflava-se como uma sede de vida impossível, porque viver é não saber que se vive. Ocupou-se de pequenos remorsos cuja origem nem pudera recordar, enquanto as horas estendiam-se vagarosas, indiferentes como dois olhos de estátua.
Lembrou-se, metaforizando a apatia do tempo para com os inquietos, do sonho que tivera em suas poucas horas de sono: repetia-se a noite anterior tal como fora em simetria robótica; exceto pelo fato de todos os rostos amigos terem-se substituído, no sonho, por rostos de mármore. As risadas, as conversas sobre nostalgia e os êxtases de cada momento eram reproduzidos detrás de marmóreas máscaras brancas, impecavelmente iguais. Pensou na vida humana como isto: um baile de máscaras, cujas faces não se revelam jamais.
A mulher ao seu lado dormia indiferente aos seus pensamentos e angústias, em seu sono que ele não poderia acompanhar. Agradeceu novamente ao acaso por ser sua companheira uma estranha com quem poucas palavras trocara, já ao final da noite anterior. Confortou-se na ideia de que não se pode mascarar o desconhecido, pois ainda não se tentou lhe olhar a face. O tempo, em sua estaticidade, já não o martirizava após ter encontrado esses pensamentos, de que se esqueceria durante as semanas por vir.
Semanas passaram-se até que voltasse a lembrar, mas então com tormento ao invés de amparo, do sonho que tivera e das conclusões que sua lembrança trouxera. Percebeu que em tantos momentos derradeiros de sua vida sua própria máscara o guiara através dos eventos que compuseram sua existência toda. Era sua vida um labirinto, e assim o era porque assim a tinha guiado, perdendo-se em suas próprias mentiras, em busca de uma verdade impossível. Pensou na irrevogabilidade do tempo, cujas passadas forçam decisões irreversíveis a cada instante, mas nem sempre com o alento da inconsciência… o sonho repetiu-se, na noite seguinte, com o acréscimo da frase dita por um narrador amorfo ao seu final:
“Não existem remorsos para os pecados secretos.”
Lembrou-se da frase e, acordando, não encontrou forças para levantar-se, revirando-se, não achou sono que lhe acalentasse. Os pensamentos desconexos, inconclusivos e paranoides eram-lhe a única fuga ante o poder fulminante da lucidez trazida pelas memórias e sonhos que o perseguiram nesses eventos descritos. O espelho torcido de sua percepção deslocava-se a lhe refletir monstruosas deformidades existenciais. Somente após o meio-dia, ainda sem comer, ainda em desvario, agarrou um pedaço de papel onde riscou apressadamente os seguintes versos:
É somente ao despertar que nos ferem
Os sonhos. Quando validados pela
Verdade que a Consciência lhes confere,
Enchendo-nos os martírios de pena…
Eu, que na vida andara sempre a esmo,
Vi-me refletido na alma do mundo!
Este borrão de perfídia, imundo,
Jaz sob as máscaras de cada enfermo…
Sou eu também lépido, como vós!
Sou-lhes a mesquinharia que imito,
E cada crime oculto jaz em nós.
Na garganta em que repousa o grito
E fenece, debilmente adestrado,
Degluto o terror que haveis Mascarado.
Isso dito, os dias voltaram à sua corriqueira monotonia, em que a domesticidade dos afazeres e preocupações da vida diária permitem pouco espaço para a reflexão, se esta trouxer angústia. Os versos postos naquele papel acabaram perdidos como outros tantos, que, se lidos fossem, encontrariam incompreensão e indiferença — tal como encontram os homens e as mulheres que escrevem e que não escrevem versos. Os sonhos foram sonhados, a vida foi vivida, até que, passando, se perdesse, como se perdem todas as coisas, seja pelo tempo, pela morte ou pela indiferença…
Thiago dos Santos Nelsis é oficial de justiça, pós-graduado em Direito Público e Processo Civil, autor de Brinde Noturno e Outros Poemas (2012) e Mecânica (2018), e membro da Academia Uruguaianense de Letras. Coorganizou eventos literários, foi colaborador do jornal Tribuna de Uruguaiana e apresentador do programa semanal Balcão Cultural na Rádio São Miguel AM 880.