um jogo com espelhos que se deslocam, conto de Thiago dos Santos Nelsis

Ele acordou em sua antiga casa, onde morara durante sua vida inteira. Os sentidos embotados por um misto de ressaca e sono, como quando se desperta sem se deixar, de todo, de sonhar. Olhou o quarto e sentiu-se mais estranho que quando retornara, dias atrás, tendo passado o tempo e os eventos que lhe fizeram outra pessoa. Pensou que fosse aquele quarto uma replicata de seu quarto anterior, pensou que fosse a cidade inteira uma replicata de sua cidade anterior. A mulher que dormia ao seu lado, ao menos, era de todo uma estranha, e por a conhecer tão pouco, era o único componente familiar daquele cenário, e sentiu-se grato, porque assim não era ele uma replicata de seu eu anterior.

A claridade era invasiva e não lhe permitiu voltar a dormir. Pensou na ironia que é refugiar-se das sensações no sono — em como só se pode dormir de fato para escapar da apatia, que é quando não se precisa dormir. A insônia, irmã siamesa da angústia, insuflava-se como uma sede de vida impossível, porque viver é não saber que se vive. Ocupou-se de pequenos remorsos cuja origem nem pudera recordar, enquanto as horas estendiam-se vagarosas, indiferentes como dois olhos de estátua.

Lembrou-se, metaforizando a apatia do tempo para com os inquietos, do sonho que tivera em suas poucas horas de sono: repetia-se a noite anterior tal como fora em simetria robótica; exceto pelo fato de todos os rostos amigos terem-se substituído, no sonho, por rostos de mármore. As risadas, as conversas sobre nostalgia e os êxtases de cada momento eram reproduzidos detrás de marmóreas máscaras brancas, impecavelmente iguais. Pensou na vida humana como isto: um baile de máscaras, cujas faces não se revelam jamais.

A mulher ao seu lado dormia indiferente aos seus pensamentos e angústias, em seu sono que ele não poderia acompanhar. Agradeceu novamente ao acaso por ser sua companheira uma estranha com quem poucas palavras trocara, já ao final da noite anterior. Confortou-se na ideia de que não se pode mascarar o desconhecido, pois ainda não se tentou lhe olhar a face. O tempo, em sua estaticidade, já não o martirizava após ter encontrado esses pensamentos, de que se esqueceria durante as semanas por vir.

Semanas passaram-se até que voltasse a lembrar, mas então com tormento ao invés de amparo, do sonho que tivera e das conclusões que sua lembrança trouxera. Percebeu que em tantos momentos derradeiros de sua vida sua própria máscara o guiara através dos eventos que compuseram sua existência toda. Era sua vida um labirinto, e assim o era porque assim a tinha guiado, perdendo-se em suas próprias mentiras, em busca de uma verdade impossível. Pensou na irrevogabilidade do tempo, cujas passadas forçam decisões irreversíveis a cada instante, mas nem sempre com o alento da inconsciência… o sonho repetiu-se, na noite seguinte, com o acréscimo da frase dita por um narrador amorfo ao seu final:

“Não existem remorsos para os pecados secretos.”

Lembrou-se da frase e, acordando, não encontrou forças para levantar-se, revirando-se, não achou sono que lhe acalentasse. Os pensamentos desconexos, inconclusivos e paranoides eram-lhe a única fuga ante o poder fulminante da lucidez trazida pelas memórias e sonhos que o perseguiram nesses eventos descritos. O espelho torcido de sua percepção deslocava-se a lhe refletir monstruosas deformidades existenciais. Somente após o meio-dia, ainda sem comer, ainda em desvario, agarrou um pedaço de papel onde riscou apressadamente os seguintes versos:

É somente ao despertar que nos ferem
Os sonhos. Quando validados pela
Verdade que a Consciência lhes confere,
Enchendo-nos os martírios de pena…

Eu, que na vida andara sempre a esmo,
Vi-me refletido na alma do mundo!
Este borrão de perfídia, imundo,
Jaz sob as máscaras de cada enfermo…

Sou eu também lépido, como vós!
Sou-lhes a mesquinharia que imito,
E cada crime oculto jaz em nós.

Na garganta em que repousa o grito
E fenece, debilmente adestrado,
Degluto o terror que haveis Mascarado.

Isso dito, os dias voltaram à sua corriqueira monotonia, em que a domesticidade dos afazeres e preocupações da vida diária permitem pouco espaço para a reflexão, se esta trouxer angústia. Os versos postos naquele papel acabaram perdidos como outros tantos, que, se lidos fossem, encontrariam incompreensão e indiferença — tal como encontram os homens e as mulheres que escrevem e que não escrevem versos. Os sonhos foram sonhados, a vida foi vivida, até que, passando, se perdesse, como se perdem todas as coisas, seja pelo tempo, pela morte ou pela indiferença…

Thiago dos Santos Nelsis é oficial de justiça, pós-graduado em Direito Público e Processo Civil, autor de Brinde Noturno e Outros Poemas (2012) e Mecânica (2018), e membro da Academia Uruguaianense de Letras. Coorganizou eventos literários, foi colaborador do jornal Tribuna de Uruguaiana e apresentador do programa semanal Balcão Cultural na Rádio São Miguel AM 880.