primeiro capítulo do romance ‘O incêndio’, de Alexandre Staut

capa_staut1. A camisa-de-vênus e a banana

Entre os assuntos de 1981, além de protozoários, da vida sexual das plantas, estava a biologia humana. Era fácil estudar a matéria tendo a professora como exemplo. Ela era a abundância, principalmente na fartura dos peitos. Tinha a impressão de que um dia ia tirá-los para fora e dar de mamar a cada um de nós. Não era possível ter o útero seco, como falavam pelos corredores da escola.

Quando o sinal soava, três ou quatro colocavam a cabeça para fora da sala e anunciavam para toda a classe o vai e vem das pernas dela, como se narrassem no rádio um jogo de futebol. O assunto, que seguia, quase sempre, era a distância e a quantidade do sêmen derramado na punheta diária. A classe caía na risada.

Leonor me causava tontura. Eu a olhava e tinha medo do meu próprio corpo, os cheiros novos, azedos. Tudo crescendo desordenadamente. Não provei do leite das suas tetas. Figurativamente, sim.

Eu espiava de rabo de olho os seus olhos, que mudavam de cor de acordo com a temperatura climática. Falavam que pessoas de olhos claros, como os dela, mas sem cor definida, eram falsas. Eu tinha medo de quando ela me encarava, mas também da sua respiração próxima à minha; tremia até mesmo quando sentia a nuvem do seu perfume invadir a sala, logo após ela entrar.

No começo de semestre, ela reclamava do calor; entrava na sala abanando-se com a apostila dobrada ao meio. Quase sempre, numa mesma frase, pedia que abríssemos os vitrôs e o caderno. Um colega se levantava, abria as frestas. Ela levantava o queixo ao sentir o ar entrar. “A página em que paramos na aula anterior…”, falava. “Página 40, página 40 e pouco.”

A síntese proteica, a síntese de alguma coisa desconhecida, algo que coçava entre a roupa e a minha pele, camada de prazer que eu queria ignorar. Aquela devia ter sido uma das primeiras aulas do ano. Ela apontou o dedo para o André. Pediu que o colega lesse o trecho inicial da lição. Ele pigarreou e, em voz ora grave, ora aguda, atendeu ao pedido.

Ao perceber que a sala prestava mais atenção no seu jeito de operar o tom de voz do que no texto, colocou firmeza na fala. Pudemos então ouvir que o núcleo — sempre se falava no núcleo das células —, o núcleo controla a atividade da célula através da síntese proteica. Deve ter falado algo mais ou menos assim, pelo que me lembro: “No núcleo, há o DNA, o código da vida, ou seja, uma sequência de filetes, ou seja, a informação de que o pequeno organismo necessita para realizar as suas atividades”.

O rapaz continuou a ler, passou a fala, em seguida, para Ivan, de acordo com a ordem de leitura indicada pela professora. Ela sempre apontava o dedo indicador para as fileiras, da esquerda para a direita. Não precisava. Olhávamos para ela e sabíamos o que devia ser feito. O próximo a ler disse algo sobre os tipos de RNA, acho que foi isso. O mensageiro, o transportador, se não estou enganado. A lição passou por mais ou menos dez bocas, até ganhar a fileira em que eu me encontrava, encolhido. Li um trecho. Teria sido sobre proteína? Gema de ovo, ovo estralado. Sempre que essas aulas chegam, em nuvens de calor, aparecem palavras como citoplasma, códons, aminoácido, alguma coisa plasmática, além da forma disforme da célula, que para mim era um ovo frito.

Parte da minha atenção se voltava a essas palavras, à lição, em busca de possíveis descobertas sobre o mundo. Parte percorria a sala, rastejando o olhar rente ao chão, onde encontrava as pernas da professora, todas as pernas, dos colegas, os tênis surrados que os meninos usavam. Os olhos percorriam então o vão da minha carteira, na altura do meu colo, ali onde guardava a mochila, o volume dos Contos novos, uma paçoca, uma ou outra quinquilharia.

Mário, eu repeti, mentalmente. Mas quem era o tal Mário? Como era a sua cara? Pensava no homem, sem mover os lábios. Vez ou outra, puxava o livro, abria uma página marcada. Lia um parágrafo. A história do Frederico Paciência. Aquilo era uma maluquice. Não tinha cabimento. Quem eram aqueles rapazes? Um casal de rapazes… Seria um deles o próprio Mário? Algumas palavras, eu grifara levemente, a lápis. Algumas estavam circuladas. Ele era um poeta. E, quando eu pensava nisso, vinha a imagem da professora de português. Os contos novos, modernos.

Os grifos, meus grifos. Não podia rasurar o livro. Era emprestado da biblioteca. Em que circunstâncias eu teria rabiscado o volume emprestado nos dias anteriores? Folheando as páginas, percebi um parágrafo inteiro grifado. “(…) já nem sabendo de mim, aliviado em minha sinceridade. Chegara à esquina em que nos separávamos, paramos. Frederico Paciência estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida. Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade.” Acho que foi este parágrafo.

Talvez isso não tenha acontecido na aula que agora relembro, mas no mês seguinte. Na aula de ciências, após minha leitura de um trecho da apostila, uma voz do fundo da sala se sobressaiu. Voz sem rosto. Um colega questionou a professora sobre os rumos da Ciência, a Ciência com Cê maiúsculo. Onde a Ciência esbarra nessa coisa de código genético? E as doenças infecciosas, falávamos muito da aids naqueles dias.

A professora fez uns instantes de silêncio. Parecia buscar novidades na memória. Mas não respondeu.

Depois, tirou do meio da apostila um maço de páginas mimeografadas que distribuiu entre os alunos. Pediu que lêssemos todos juntos um texto em letras roxas, o papel úmido cheirando a álcool. Assim fizemos, respeitando vírgulas e acentos, as células, objetos que mal podiam ser mesurados. Trinta milionésimos de milímetro, menores que os vírus. Nesse ponto, observei uma colega, ao lado, segurar uma régua. Talvez tentasse destacar, com a ponta do polegar, um milímetro no espaço de um centímetro.

As formas minúsculas de vida, algumas que, para se reproduzir precisavam passar rasteira nas minhas pernas, as pernas que cresciam pulsante de pelos, os membros fortes, que se misturavam aos dos colegas nos dias de futebol.

Ainda não existiam os problemas do mundo, as guerras, o flagelo da fome, somente os problemas do corpo, os pelos ralos ao redor do sexo, o tamanho do pau e dos bíceps, o peito das meninas, as minhas espinhas, o desejo de ter a mesma altura de alguns dos garotos da sala, ter as coxas fortes e firmes; eu pretendia andar desconcentrado, mas, ao mesmo tempo, senhor dos passos.

Não queria mudar o mundo, precisava era de uma boa mudança na aparência. Como murchar a cara redonda e espinhuda de goiaba bichada? Se me perguntassem àquela época sobre o meu grande desejo… era ter os olhos um pouco mais vivos. Menos pruridos na cara; talvez quisesse ter no andar uma mistura do jeito de corpo do Luiz e do Cardoso, juntos, num só eu. Isso era possível? A voz do Sérgio, talvez. Ele nunca desafinava. Quando chamado para a leitura dos textos, impostava a voz, como um locutor de rádio. Quando eu lia, percebia claramente o volume da minha própria voz perder força. Fazer-me ser ouvido no futebol, isso seria impossível.

Enfim, a adolescência se apresentava, de certa forma, ordinária; mas até a página dois. No comum, havia entre mim e os colegas: o entorpecimento por certo ar burguês, que pairava sobre nossa escola, mesmo sendo uma instituição pública, que reunia gente dos quatro cantos da cidade. Havia o desejo de imitar tudo o que chegava através de revistas, jornais e tevê, a calça Zoomp, o tênis Rainha, depois o Reebok, que a gente desconfiava pronunciar errado. Tudo cutucava a gente.

Houve um dia, acho que na mesma semana, em que acordei do meu quase sonho com uma espécie de pancada no pensamento. A professora de ciências deixou todos corados ao vestir uma banana madura com uma camisinha. Vagarosamente, deslizou a borracha gosmenta sobre a fruta, com mãos de unhas pintadas de um esmalte vivo. “Assim se usa o preservativo”, disse, citando as doenças sexualmente transmissíveis, que ela nomeou de venéreas, como repetiria algumas vezes naquele ano.

No entanto, aids, sífilis, gonorreia e afins eram histórias de ficção científica, coisas tão irreais quanto pacmans, os bichinhos come-come do videogame. Assim também soava a ditadura militar, que, em seus suspiros finais, chegava aos nossos ouvidos rodeada de meias-palavras, mal-entendidos, algo que ninguém comentava em casa ou nos domínios da escola.

| primeiro capítulo do romance O incêndio (Folhas de Relva Edições, 2018). |

Alexandre Staut é o idealizador do site São Paulo Review e autor do livro Paris-Brest.