assim, conto de Cinthia Kriemler

Alguns minutos. É tudo o que me separa do deboche de uma manhã ensolarada. A madrugada já é uma desistência concreta e começam a aparecer essas cores irritantes das manhãs de verão. Preciso ir. No trato que acertei comigo ficou explícito que minha morte será na madrugada — essa vadia fraterna. As manhãs sempre convencem a ficar.

Mas não é só a proximidade do dia que me inquieta. É você. Você aí hesitando. Com essa cara de pena. Tenho medo dos recuos. É preciso haver honra entre executor e executada. Você foi uma escolha. Um pensar e pensar. Um decidir entre ofertas. E agora esse fraquejar.

Eu podia pagar a um estranho. A um pistoleiro (é assim que se diz?), a um sádico, a um psicopata. Não quis. Não quero. Preciso de afeto na morte. De pessoalidade.

Merda. Não faz isso comigo. Você me atrasa para os meus demônios. Remexendo meus sentimentos como se fossem um campo de plantio. Tentando me saber. Por que você me julga? Espere amanhã, quando todos me julgarão. Junte-se a eles em orgia. Agora, não tenho tempo. Quanto mais você insiste nessa teimosia estúpida, mais me distancia do meu tempo de ir (ainda mais curto agora).

Eu poderia convencer você com pouco verbo. Bastaria falar de qualquer uma das minhas razões. Do aborto fracassado que fui de minha mãe. Dos pais arranjados que tive. Muitos. Todos ávidos por marcar a minha carne com a fúria de murros e chutes, ou com as picas fedidas de mijo velho. Mas isso deixaria você com pena de mim. Não é o caso.

Sabe esta cicatriz no meu rosto? Última lembrança da minha mãe bêbada. Deixei cair sem querer uma das suas garrafas malditas. Ela me cortou com o gargalo quebrado. Afundou, afundou, afundou até eu desmaiar. Umas horas depois eu a matei. No sofá da sala de chão batido, enquanto ela dormia seu sono de álcool. Matei sem esforço, com as minhas mãos.

Não peguei cadeia. Eu era menor. Nem peguei internação. O corte no rosto ajudou.

Viu no que dá um julgamento apressado? Mas tudo bem. Você agora não está mais com pena de mim. O seu silêncio enojado é a prova disso.

Eu nunca senti culpa.

Mas de um tempo para cá meus pensamentos deram para se amotinar. Remorso? Razão? Vai saber. Me veio uma dor atrasada. Acumulada feito água parada. Fisgando uma decência que eu nem imaginei que tinha. Uma dor de desistência. Dessas que fazem a gente compreender que chega. De tentar, de errar, de ter nascido azarão.

Anda. Põe logo as mãos no meu pescoço. Isso. Assim. Olha pra mim. Olha, vai. Eu preciso dessas lágrimas. De afeto. De pessoalidade. Aperta bem. Assim. Assim. Ass…

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance. 2017); Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos. 2015. Livro semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (Contos. 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). E do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Editora Penalux, 2017) e participa de várias antologias. Escreve para a Revista Samizdat. Tem textos publicados em Mallarmargens, Germina, Escritoras suicidas, Diversos afins, Revista Philos, Revista InComunidade.