quatro poemas de Carlos Emilio Faraco

s/título

Maria, aquela resposta atravessada que você me deu,
Eu joguei no poço.
Ela ficou ali, travando a subida do balde,
Travando a descida da corda.
O poço engasgou, Maria, igual a minha goela.
Se você tiver sede de noite, me chama.
Eu vou até o riozinho e lhe trago uma moringa de água.
Mas amor, Maria, não tenho como trazer.
Amor não cabe em moringa,
Caneca, pote ou vasilha.
Amor é igual ofício: só cabe na cova das mãos
E decerto vai escorrer pelo caminho
Enfeitando em desperdício
A escura beirada do rio…

segundo round

Verso de rosto bifronte,
breu na frente, sol no avesso,
eis o que ora enfrento.

Decifrar-me é tão penoso,
que às penas naturais
outras mil se sobrepõem,
de forma que o voo de antes
não se arremata depois.

Um tombo seguido ao outro
revela um chão mais fugaz:
(talvez um leito de areia?)
mas é o chão que se afunda
não o voo que se alteia.

a terceira margem do rio
(Inspirado no conto de Guimarães Rosa)

Lá em cima do armário,
A velha caixa
Com o chapéu novo,
Que o pai não chegou a usar.

Não serve pra nada,
O maldito chapéu sem expectativas.

Talvez fosse melhor
Jogá-lo pra cima
E treinar tiro ao alvo,
Como nos bangbangs
Da televisão ainda bojuda da sala de estar.

Conclui que o chapéu
O escraviza
De dentro da caixa,
Lá em cima do armário.

Precisa achar uma utilidade
Para o maldito chapéu sem mais percurso:
Chapéu sem cabeça,
Que o transforma em réu.

Pega uma cadeira,
Disposto a botar fim
Na servidão.

Sobe,
Pega a caixa,
Coloca-a sobre a cama,
Abre-a com mãos trêmulas.

Retira o chapéu,
Desvirgina-lhe a aba,
Coloca-o sobre a cabeça
E sai de casa,
Caminhando para o bar,
Onde outros chapéus quase virgens,
Sobre cabeças ainda jovens,
Conversam entre si.

s/título

Não quero ter
Não quero ser
Quero-me nuvem
Quero chover.

Carlos Emilio Faraco é professor aposentado. Autor de obras educacionais e de um livro de poemas. Comete textos no Facebook. Ancião brasileiro (71 anos) esperando o gigante amanhecer.