vidas alcoólicas, conto de Vinícius Canhoto

É louca a vida, o vômito, a vagina que é carne, que é crua e sangra sem que se morda, como manga madura, que se come e lambe com lábios molhados e pêlos entre os dentes. Trinta anos, lavo-te os antebraços, os braços, o pênis, as coxas, as costas, o tórax. Virgem, lavo-me buscando vestígios do hímen há muito tempo rompido, a viga dos ossos, as paredes da pele, todas as portas do meu desejo. Visto-me, saia rubra, meias três-quartos, colares, meu casaco jeans. E perambulamos, eu de coturno e você de all-star cano alto, pela prisão das ruas que me libertam por um Café, um cigarro, um trago, altos de copos a correr com lágrimas nos olhos por uma vida que também é crua, faminta como o bico dos corvos e traiçoeira como os caninos dos chacais e pode ser tão generosa e mítica como sonhos e amendoins espalhados sobre a mesa. A vida é líquida, gelada como são, às vezes, duras e secas minhas palavras quando peço desculpa para mim mesma antes de nos sentarmos à mesa de jogos etílicos para cambiarmos, por pura orgia de plebeu, o pouco dinheiro que temos pelo ouro da bebida.

Aos poucos vão se fazendo remansos de nossos medos, e são atirados búzios e decifradas as mandalas do nosso destino de amantes sob os insultos e revanches do passado e agora. Aos poucos nos tornamos dois palhaços, encharcados de risos, rostos coloridos pelos aplausos, pelas luzes, pelos corações psicodélicos. Vejo nos teus lábios o lança-chamas que me chama para queimar enquanto o circo pega fogo no sinistro das horas, das horas, das horas assim em que você me dava um talismã e desta forma se fazia o tempo das conquistas. E a vinda da noite anunciava o que ainda não vivemos e deveríamos viver entre histórias e segredos. Por algum momento, nos esquecemos de nós e vimos um Ogum sambando bonito e bandido para seu Xangô que bebia vodca com coca-cola. Eles não nos viam, aliás, viam apenas a si próprios. Entre eles não havia palavras, só o suor da proximidade, a dança, o movimento de uma música imaginária que apenas eles ouviam entre quadris, coxas, pés, mãos pelas cinturas, cabelos molhados de suor, pêlos salgados que se misturavam. Estavam apaixonados. Dois compridos de ecstasy tirados do púbis de um deles prenunciavam o beijo de bocas que pareciam figos abertos em forma de flor. Talvez quisessem ficar assim por toda uma eternidade, porque assim se completavam. Estávamos ternos de vê-los e, de repente, quando menos se esperava, surgiu um grupo de skinheads com sua covardia, escuridão e agressão com coturnos. Foge, gritou um deles, estendendo o braço, mas sua mão agarrou o vazio; não viu a cara caída do amante ser chutada, saiu com a sensação de ter traído seu melhor amigo ao deixá-lo no meio daquela violenta massa escura: quis tomá-lo pela mão, protegê-lo, mas sem querer estava sozinho, correndo pela rua enquanto o outro era linchado por aqueles neonazistas. Embriagados, vimos essa sucessão de fatos como cenas de cinema e, como cidadãos civilizados, não nos importamos, não nos metemos, mudamos de bar. Na contramão da alvura dos paramédicos em ambulâncias enlouquecidas, do gris dos tiras indiferentes aos crimes da noite, subimos e recortamos as avenidas até pararmos em outro camarote cujo espetáculo fosse menos intolerante e hediondo.

Descascamos o cotidiano com nossas próprias unhas como se arrancássemos a epiderme de uma laranja e seu ácido espirrasse em nossos olhos e nos fizessem chorar e por isso, bêbados, choramos e aguardamos, meu amor e eu, o tépido poente, o copo, a casa — Tudo se dignifica quando a vida é líquida. Toda decadência deve ser pública e publicada. E bebendo a vida, recusamos tudo que é sólido e desmancha no ar ou desce das vísceras ao vaso sanitário, ao esquecimento. Nossos olhares gasosos odeiam os rostos sóbrios, os olhares que nos condenam por adultério, as vozes que se ampliam a nos chamar de alcoólatras. Gente que geme, sofre e morre, enquanto ficam vazios os copos e fica em repouso a bebida, e a nossa vida, em compensação, é mais viva quando escorre como feridas mal curadas e cutucadas pelo prazer de rever sangrar.

Do líquido dourado faço rio e te vejo Boto surgir e mergulhar no suave amargo líquido que nos afoga até descer escorrido pela ureta ou qualquer canal uterino. Vamos liquidificar o mundo em nossas mandíbulas e bebê-lo em longos goles. Minha vida ressoa o coturno na calçada. Estou mais do que viva: embriagada. Bêbados e loucos somos chamados de dionisíacos e antropofágicos porque repensamos a carne, o corpo, a vastidão, o fogo, os conceitos, as palavras, como convém a bêbados, o grito inarticulado, a garganta cadente, devassa de poemas, verbos, substantivos, adjetivos e palavrões. Alguns se ofendem por acreditarmos que marcianos invadem a terra e nos ensinam a amar e escrever. Então nos chamam novamente de alcoólatras, malditos, lunáticos, canibais, mas contra tudo o que esses moralistas lutam sendo exatamente tudo aquilo que eles são: casas que fugimos, paredes que transpomos, muros que pulamos para voar alto pela madrugada antes do meu casaco roto me carregar para casa, para longe de você, meu companheiro de bar, como um blue jeans alado que se desfaz por maus tratos e é gasto e rugoso nos bolsos e revela-se como pele em carne viva. Porque quando tiro meu casaco roto cheirando à rua e arranco os coturnos na alvorada ou quando os coloco rápido entre o crepúsculo e o ressentimento, caio sempre de bruços na cama como se nunca mais pudesse levantar. Então, a vida é que me põe em pé e a sede e a saliva e a língua que procura aquele gosto molhado, dourado que acaricia os lábios, babando impudente no casaco. É bom e manso meu casaco jeans, mas um tanto malcriado quando reclama: Lava-me.

Se um dia você, que se despede ao final de cada encontro, se afastar de mim — o que não creio — porque há algumas intensidades entre o que o bebo e o que me bebe e bebe por mim. Recorda-me ao descalçar seu all-star e despir sua calça jeans manchada, deite-se apenas vestido da camiseta que carrega consigo meu cheiro, e de cueca com resquício do que você deixou de derramar em mim e durma sentindo meu prolongado vazio, pois não vou te emprestar meu casaco jeans e meu coturno porque é de minha nudez que você precisa. Deita-te comigo quando puder ou quiser e apreenda a experiência do prazer depois do êxtase de se deitar comigo. Bebe-me como te bebo. Estilhaça tua própria medida como cacos de copos baratos de bar.

Vinícius Canhoto é mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e autor de Livro do Esquecimento.