Cai a noite no instante do agora
que habito só por força do costume.
Fumo o último cigarro, some o sono,
é a hora derradeira, minha amiga.
Não importa tanto quanto que se diga,
não importa, tudo é vão quando se apaga;
veja o sonho no desenho da fumaça
que exala já da cinza que se acaba.
Não conhece o imponderável da estrada
quem o pé pisa ligeiro em seu princípio,
e não sabe de fim de caminhada
quem o passo tem pequeno e finito.
Por isso o grito mouco do já dito;
não se quer ferir a pele, mas é tarde,
porque ninguém costura calmaria
à agonia de um coração covarde.
Abra, então, essa janela, sinta a brisa;
o mofo da indiferença já invade
a nossa sala, a nossa casa, a nossa vida,
e não se deixa, nunca, minha amiga,
caminho livre para aquilo que é passado,
pois estaca firme sobre o chão duro,
põe no mapa da memória um monumento
ao cupim que rói o findo e o futuro;
e a pele já não reconhece a palma
que a mão espalma pelas longitudes
de um corpo que se agita e que se espraia
desejando sem querer, numa ânsia
pelo fim do voo do pássaro infinito,
que recôndito traz o peito sob as asas,
mas não pode esconder o que desaba,
cujo tempo, enfim, queda caniço.
Quem a terra cava à busca de razão
grava em pedra qualquer significado
pois difícil é saber que tempo passa,
às vezes, sem nenhuma acepção.
Resta-nos a destreza do curtume,
nesta noite, neste instante, neste agora,
porque não há cigarro que esfume
o medonho peso da última hora.
Yuri Pires nasceu em 1986 na cidade do Recife, em Pernambuco. É autor dos livros O Homem e o Seu Tempo (2014), Fábrica de Heróis (2015), Artifício (2016) e A pedra (2017).