procedimento, conto de Lucas Verzola

Quando toca o sinal que indica o intervalo matinal, fecho o caderno, guardo as canetas no estojo — é proibido sair no pátio com material —, levanto, empurro a cadeira para perto da carteira, e saio da sala de forma calma e tranquila, seguindo a fila só de rapazes. Logo identifico meu grupo. Uniforme bem passado, calça e camiseta limpas. Nossa trajetória é parecida: família nas mesmas condições, bairros com os mesmos problemas, companhias com as mesmas influências. Responsabilidade sobre nossa vida delegada a terceiros, que não se furtam ao direito de controlar no que podem nosso corpo, nossa mente. Cumprimentamo-nos com toques que nos permitem identificar um dos nossos no primeiro contato. Não podemos fumar, não podemos correr, exceto dentro das quadras. Há funcionários nos vigiando por toda a área externa. Além deles, as câmeras instaladas em cada esquina estão prontas para denunciar à diretoria qualquer conduta inapropriada que esteja fora do alcance dos vigias. Vejo grades por todo lado. Separam-nos da ala das meninas, da ala dos meninos mais novos, da ala hospitalar. As quadras podem ser usadas para aqueles que praticam esportes, mas nosso grupo não se interessa muito por essa atividade. Gostamos é de música. Rap e funk, como todos os moleques daqui, mas de rock e MPB também. Só que aqui não se ouve muita música. Os alto-falantes servem apenas para os recados da administração, ou para tocar o hino nacional no início de cada jornada. E, toda vez, fico emocionado, sempre na introdução. Um funcionário achou que é porque sou patriota, então me obriga a hastear a bandeira toda segunda-feira. Os moleques não entendendo porra nenhuma do que diz a letra, repetem no máximo sobre as margens plácidas, o lábaro estrelado, o penhor da liberdade. Tem sempre um aluno novo ou um distraído que bate palma quando acaba de tocar e é punido por um funcionário a mando da diretoria. Depois, sala de aula. Engana-se quem pensa que o controle lá dentro é muito diferente do que recebemos lá fora. Não há espaço para contestar, discutir, tirar dúvidas. Aqui nossa voz não existe. Nossa voz só existe do lado de lá dos muros. “No mundão”, como brinca o Anderson. É a forma como ele se referia ao mundo exterior quando estava internado na Fundação CASA. Segundo ele, esta escola particular aqui do bairro é mais parecida com a Fundação do que muita gente imagina.

| conto 46 do livro Em conflito com a lei (Editora Reformatório, 2016) |

Lucas Verzola é escritor e editor da Revista Lavoura. Publicou os livros de contos São Paulo Depois de Horas (Ed. Patuá, 2014), finalista do Prêmio SESC de Literatura; e Em Conflito com a Lei (Ed. Reformatório, 2016), com apoio do ProAC 2015. E-mail para contato: verzola.lucas@gmail.com.