bicho sem mar
a coisa é simples primeiro
arranca a casquinha e raspa
precisa uma faca pouco amolada velha
e que o caldo escorra pelos braços
depois o corpinho todo
compartimentado feito de duas abas
compartimentadas
brancas
____________coração é coisa que desmonta
____________feito caixa de siri cozido
entre uma e outra
a gordura é verde-alaranjada
é a parte nobre forte do bicho
mas alguns restaurantes aceitam apenas
a parte branca
das abas e das perninhas
que chamamos unha do siri
que quebramos por último porque
são duras demais fincam
o meio de nossos dedos formam-se
calos
o caldo escorre pelos casacos
das adolescentes doidas por um trocado
debruçadas sobre a caixa úmida
o caldo
entra pelas unhas da vó verdes e ocas
muita micose
um quilo de siri agora custa
cinquenta reais
em ipanema
uma criança debruçada
sobre a caixa úmida
aprende a falar
shhhh
quebra as partes inúteis do bicho
rasga a pele frágil da mãozinha
shhhhh
tenta falar
siri
s/título
do vidro contei floquinhos brancos na calçada da tua casa na porta da vila no vidro gotas tentei fotografar mas o flash tornou branca a tela quis registrar pra depois tratarmos o branco o teu sal troco e ruína das latas que catamos e o sal dos siris tropicando e dizendo não é natural que a água esteja pelas canelas ontem os floquinhos contavam tempo do teu sal decantado no fundo de todos os copos todos os traços das gravuras que sequer construímos contavam daquela vez que o heyk viu na entrada do metrô os corpos que ralavam o isopor contra as grades o metrô cortava trilho contava o tempo crivava a neve acrílica na carioca os floquinhos grudavam na cabeça das velhas fotografei teus cantos semicerrados na porta da vila os floquinhos não a areia branca das coisas feitas lembrei dos cacos das quebras de expectativas das montanhas de sal cabo frio janela borrada e outras gotas no vidro adivinhei os floquinhos eram aquele isopor dos moradores de rua acrilon poeira de ossos sequíssimos crostas dos bichos que matei quando criança e teu sal, bianca
Ana Carolina Assis é poeta e educadora. Mora em São Gonçalo desde que nasceu, em 1991, e ainda investiga esse trânsito mato-asfalto ao ir pro Rio. Cursa o mestrado na UFF, pesquisando poesia, corpo e esquizofrenia em Adília Lopes e Stela do Patrocínio. Tem poemas publicados nas revistas Garupa, Escamandro e no site Mulheres que escrevem. Constrói a muitas mãos a Oficina Experimental de Poesia desde 2015 e esse ano publicou com el_s o Almanaque Rebolado (2017, Azougue, Cozinha Experimental e Garupa).