colônia, de Patricia Porto

Um dos meus primeiros trabalhos na vida foi num armarinho. Eu tinha uns 15 anos. A dona era uma portuguesa que contratava criança pra trabalhar por míseros dinheiros. Na mesma época li Crime e Castigo. Lia em pé nas longas horas vazias sem clientes. Alfinetes, linhas, botões, meias, bugigangas de plástico, brinquedos de plástico, muita merda de plástico. Em meus delírios, ainda bem acordada, me imaginava a assassina da patroa branca e rosada. E foi por tanto desejar que um dia pedi demissão. A bruxa me pagou as horas do dia e só. Disse que pagava o restante depois, mas nunca. Joguei todas as pragas que eu conhecia nela, todo mau agouro. Todos os dias esmagava seus olhos e apertava seu pescoço gordo e suado até sentir bom prazer. Quando chegou o Natal, a bruxa enfim me chamou no armarinho. Achei que fosse pagar o que me devia, mas nunca. Pegou um embrulho mal feito e estendeu a mão. “Toma. Estamos quites”. Fui rasgando o papelão pelo caminho. Era um grande e desconjuntado bebê de plástico. Fui arrancando parte por parte até chegar em casa. A grande bebê de plástico comida pelo caminho. Tentei esquecer, mas nunca. Posso sentir o gosto de plástico até hoje na boca. Queria uma revolução, mas o mundo era feito de dor, chumbo e barbárie.

| crônica inédita do livro de narrativas híbridas A memória é um peixe fora d’água (no prelo) |

Patricia Porto é maranhense, doutora em políticas públicas e educação, formada em Literatura. Publicou a obra acadêmica Narrativas memorialísticas: por uma arte docente na escolarização da literatura (indicada ao prêmio Capes) e os livros Sobre pétalas e preces, Diário de viagem para espantalhos e andarilhos e Cabeça de Antígona (Editora Reformatório). Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior, integra o coletivo Mulherio das Letras e é Coordenadora do Projeto Pre-Vest Popular ANF (Agência de Notícias das Favelas).