três poemas de Francisca Camelo

ao poeta que me envia árias avulsas

andas muito lírico, amor.
não compreendo
a tua necessidade
de ouvir ópera sem parar, isso
não existe essa grandeza dos afectos
essa adolescência momentânea
os corpos rosáceos
sob um tecto de estrelas
isso não existe, meu amor.
agarra-te ao trabalho no supermercado
abraça a dormência da rotina
esquece os romances
deixa de escrever e sobretudo
não ouças mais ópera que isso
não existe, amor, e se existir
não é perto de nós.
paga a renda, come chocolates,
consolida, filho, consolida,
que o inverno vai ser longo e esses cravos
na parede e essa força
e esse amor universal não existem
nada disso existe
por isso agarra bem os talões de desconto,
serão a maior carta de amor no teu correio,
ajuda as velhas a atravessar a rua
bebe até cair
mas só a partir das oito da noite
que não te deixam sair antes do trabalho
larga a literatura
deixa os clássicos para reciclagem
mas se for poesia
queima-a:
o verso livre é perigoso.
larga os amores, as flores e os cravos
agarra-te ao boletim de voto e às revisões
constitucionais mas só se te deixarem
sair do trabalho para as urnas.
a última vez que fodeste a sério
eras adolescente e já nem sabes
se foi assim tão bom mas
não te preocupes com mais,
o prozac não esquece a alegria,
acaba o cigarro, abotoa o colarinho
toma a certeza de que só essa cadeira
é o teu lugar no mundo:
volta para dentro sorriso
amarelo ombros
encolhidos cabeça
baixa, barba feita que
não deixam que cresça porque
fica mal, fica-te tão mal
esse pensar divergente
mas sobretudo
larga a ópera, que
andas muito lírico.

manual para a solidão

o que importa
quando estás sozinha:
um bom agasalho
saber fazer silêncio
palavras amovíveis
memórias flutuantes
o coração adestrado
pouco dinheiro no bolso
olhos cerrados
medo coberto
sangue na boca
mesas quietas.
o que importa
quando estás sozinha:
um bom silêncio
saber fazer agasalho
palavras flutuantes
memórias amovíveis
o coração no bolso
pouco dinheiro adestrado
olhos cobertos
medo cerrado
sangue quieto
boca na mesa.
o que importa
quando estás sozinha:
escrever.
escrever.
mesmo quando as palavras
escrever
perdem a
escrever
ordem:
escrever.
que importa
escrever
quando estás sozinha.

wastelands

quero dos teus olhos
esse naufrágio azul
sobre as pálpebras
o bom dia, senhora
no sotaque indefinido
de manhã
quero a inutilidade
do candeeiro
quando a luz invade
as portadas
e se te deixas inteiro
na condescendência
da nudez, é a tua
boca que procuro
ainda cega, perdoa
se a sede é permanente,
levo-te aos dedos
por imaginar belos
os filhos dos teus filhos,
então invade sobe
trepa o meu ventre
(seremos sempre
animais de baldios)
e perdoa de novo
se tudo o que tenho
é esta absurda solidão;
aceita a minha inabilidade
para traduções complexas,
é em português que te ofereço a língua
e todas as minhas
petit-morts. e quando cair babel
estarei aqui plantada,
gerando raízes nesta terra
de ninguém,
entregando-te a coragem
de já não saber da pátria
e as estrias os dentes
as costas vendadas
prontas para te receber
ao pequeno-almoço, e sim,
esta sou eu e não
a ausente de mim,
submissa ao relento de
um dia
não estares mais.
é assim que recebo
a catástrofe,
os restos das tuas sardas
sobre o meu corpo, ou:
mais uma manhã
abraçando
teu naufrágio.

Francisca Camelo nasceu em 1990 no Porto (Portugal), e está de passagem por Berlim. Entre outras coisas menos românticas, escreve e diz poesia. Tem poemas publicados no blog literário Enfermaria 6 (editado pela Tatiana Faia), nas edições semanais do Nem Só de Gin Vive o Pinguim (Edições Apuro), na revista Flanzine (editada por João Pedro Azul) e na zine anarcobucetalista Mais Pornô Por Favor (pela Adelaide Ivánova), entre outras fanzines feministas. Escreve sobre vísceras e mulheres por não saber escrever sobre outra coisa, e planeja continuar.