A aranha enorme e obscura estava escondida debaixo da cama, enquanto os dois corpos se entrelaçavam sobre um colchão ortopédico — e ouvia-se o ranger de dentes, e os gritos abafados que a união entre pessoas que se desejam proporciona.
A cama era de madeira negra, antiga, talvez resistente igual ao cinismo, igual ao frio da madrugada e ao desprezo ao telefone. Era uma cama que não se desmontava, precisava ser carregada com cuidado, assim como a aranha, assim como o que é passível de perder a vida a qualquer momento.
A aranha permanecia imóvel, alheia, como se possíveis presas ali no quarto não lhe chamassem a atenção para a fome que se descortina ao que também é vivo e invertebrado.
A aranha arfava discreta, impercebível aos olhos distraídos de qualquer pessoa. Ela era impenetrável e grotesca como se caminhasse lentamente sobre o corpo de um bebê. Os ruídos e os movimentos bruscos da grade da cama provocavam nela movimentos milimétricos. Era durante a noite que elas caçavam, porém alguma coisa a impedia e a atiçava gradativamente.
Mas sobre a cama havia um homem nu e uma boneca inflável.
Sobre a cama havia um homem de sessenta anos, grisalho, solteiro e com o colesterol nas alturas. Ele enfiava a língua no orifício redondo, pintado de vermelho que era a boca daquela mulher de plástico.
No vai e vem do desejo, ele sussurrava e imaginava uma mulher real pronta a satisfazê-lo, calada, de olhos fechados, uma mulher estática como bonecas de porcelana — mas nunca como aquela boneca desengonçada.
Era a compensação difícil para si mesmo, a tara pós-moderna, o ritual secreto da solidão.
Então a aranha, talvez incomodada ou curiosa, escalou lentamente o pé da cama até encontrar o colchão, e ali se manteve intacta, em contraste com o lençol branco demais.
O homem adormecera após o gozo verossímil.
A caranguejeira se aproximou do homem, talvez atraída por alguma fagulha de desejo?
O corpo do homem sem pelos seria o terreno propício para que ela, sem ser percebida, atingisse o seu objetivo. Um objetivo íntimo das aranhas.
E o objetivo da caranguejeira era posicionar-se sobre rosto do homem, que ao abrir os olhos — por um milésimo de segundo —, estava prestes a gritar de horror. Porém quem havia se horrorizado milésimos de segundos antes foi aranha, que lhe fisgou a pupila antes mesmo que ela se dilatasse.
O homem arrancou a aranha do rosto, esmagando-a com as mãos, aos gritos de desespero. Os pelos urticantes penetraram em suas narinas e ele estava prestes a sufocar. O coração batia cada vez mais rápido, a dor era insuportável.
O homem caiu de joelhos ao pé da cama, que se desmontou, barulhenta, inesperadamente igual a um vulcão em erupção na ilha de Java. Vulcão em formato de cone formado pelo magma extravasado.
O magma daquele homem seria o próprio coração impedido de ultrapassar sua caixa torácica.
Mas ele não estava morto.
E sobre o rosto da boneca inflável, outra aranha, uma bem menor, talvez faminta, talvez imitando o comportamento da mãe — ou apenas horrorizada.
Antônio LaCarne é cearense, autor de Salão Chinês (Ed. Patuá, 2014). Seus textos fizeram parte das antologias A polêmica vida do amor (Ed. Oito e Meio, 2011), A nossos pés (Ed. 7Letras, 2017) e Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Seus contos e poemas fazem parte de antologias literárias e alguns de seus poemas foram publicados na Colômbia.