trinta anos, conto de Danilo Brandão

I.

Não tinha um fio de cabelo. Careca. Nu. Por isso, deixava a janela aberta nos fins da tarde. Os ventos invadiam o seu entre orelhas com força. Era do vento e do frio que gostava.

Coloria. Oito horas. Aquilo era o seu mundo e podia dar cor pra tudo. Odiava parar. Só saía para o café. As quatro. Seus amigos corriam para o computador. Jorravam o verde no sol. O preto virava albino. Riam. Quando ele voltava, não percebia. Nunca. Seguia o padrão dos exemplos.

II.

Era infeliz.

Sua mãe acabara ao parir. Foi no parto. Os médicos não seguravam o sangramento. Seus amigos riam da história. Apontaram-lhe a cabeça e disseram que ela não havia suportado foi aquilo. O golpe em seu ventre foi duro demais. Uma puta cabeça de alfinete.

III.

Tufo a tufo. Rarearam no topo. Duas semanas, laterais. Perdeu: mãe, cabelo, casa. Progressivo. Em ordem pra não assustar.

IV.

Mês.

Encontrou um amigo. Desses que se encontra e pronto. Nem se vê. Foi morar com ele. Um cara de trinta anos. Exatos. Gastava seu tempo entre o trabalho, yoga e cocaína. O cara ficava na fissura a cada quinze dias. Chegava em casa. Ia para o sofá, só de cueca, e olhava pro nada. Meia hora lá. Começava a berrar. Havia achado suas unhas no sofá de novo. De novo. Com os olhos saltados na sua nudez, lhe perguntava porquê não tinha cabelo. Nenhum. Não respondia e deixava a nóia se acalmar.

V.

Fim da tarde. A brisa no trabalho. Ia colorir e deixava toda a merda pra lá. Era meio automático seu caminho. Desviava das rachaduras e das bostas de cachorro. Pelas manhãs as brisas eram piores. Gélidas e fracas.

Ia.

VI.

Não havia estudado até o final. Quinto ano. Fundamental. Os meninos o jogaram na lata de lixo. Estava recheada de cacos. Fim. Os vidros penetraram a derme. Bem no fundo. Dor. Era a dor mais profunda que já havia sentido. A menina de pernas roliças escarrou bem na sua orelha. Misto de saliva e catarro. Dentro de si. Escorregava pelo pescoço. Fio taludo. Verde-água. Sentiu uma mão ossuda, gigantesca, nas têmporas. Era do menino mais magro. Dono do batalhão. Seu dente voou. Apenas leite, ficou lindo, brilhava no asfalto. O sangue já lhe tomara o rosto e não via mais nada. Confuso. Por último, um jato quente passeou por seus olhos. Nariz. Boca. Era ácido e vinha rápido. Deu tempo de imaginar que era da menina.

VII.

Apagou.

Sentava na cadeira e pintava mais um pouco. Sempre começava pela banda direita.

VIII.

Não se lembrava muito bem como caíra ali. Cadeira e mouse. Ombros projetados para o monitor e pálpebras pesadas. Lembrara-se, somente, que as veias cerebrais entupiram. Ela caiu. Era sua vó. Órfão de novo.

IX.

No outro dia, foi até o banco. Sacou a grana. Foi até a banca. Folha classificados. (11) 962006169.

Foi.

X.

Na entrevista, lhe perguntaram quantas punhetas batia por dia e se gostava de colorir. Pacote Adobe completo em quase todos os programas e duas. Deve ter sido o único a ir.

Entrou. Não se sabe o porquê.

XI.

Eram rolas de 20 centímetros. Uma entrelaçada na outra. Bucetas de todas as cores. Ele as escolhia. Começava pela banda. Direita. Homem ou mulher. Quando estava repleta de porra, gostava mais. Bem no seio da face da índia. Era sua preferida. Linda, de um branco encardido, quase amarelo, escorrendo pelo lábio dela.

XII.

Nos primeiros meses que ela aparecia, nunca terminava. Jorrava no terceiro boxe do banheiro do trabalho. Em casa, a cueca na bacia de roupa suja, seu amigo louco não aguentava. Mandava ir se fuder. Não tinha tampa, a bacia. A sala cheirava a porra seca. Aquilo o lembrava da índia e de seu rosto. Todo sujo. Gozava de novo.

XIII.

Três por dia.

Foram meses. Do nada, ela sumiu. O filha da puta de óculos a tirou. Deu-lhe uma rola branquela e passagens pra Europa. Segurou o choro até o fim. O sol saiu amarelo naquele dia e as demais cores pareciam no lugar. A porta fechou. Era o seu quarto. Desabou. Cobriu-lhe por três dias e não foi trabalhar. Sabia que a porra do branquelo já estava na cara da índia. Pronta pra ele colorir. Era diferente dos outros. Ele havia ganhado.

XIV.

Desistiu.

Foi demitido. O cara de óculos lhe deu uma foto na saída. Envelope pardo. A foto da índia. A de verdade. A sua índia. Guardou no bolso. O rosto estava limpo.

XV.

Fazia trinta ali. Hoje. Deu três suspiradas. Uma pra cada década. Jogou a foto da índia no sofá. Lembrou-se da mãe, da vó, dos cacos, do cuspe da menina, do trabalho perdido. Fazia trinta. A índia o olhava no sofá, ouviu um estrondo, seu amigo estava na fissura de novo. Pediu uma pizza pra comemorar.

Danilo Brandão nasceu em São Paulo e mora em Londrina, interior do Paraná. É estudante de Jornalismo na Universidade Estadual de Londrina. Tem textos publicados em sites, revistas e jornais literários.