Início de Junho
Carta ao vento
Prezado, acontece às vezes da menina que me habita, assustada, ir se esconder no canto mais escuro do quarto da mãe. Não exatamente pelo escuro em si, mas para ficar bem ao lado do lado da cama onde a mãe se deita. Há registros dela ali por períodos variados de tempo, tão curto ou prolongado quanto o que gasta na percepção e aceitação da mão que, estendida, vai lhe buscar. Há registro dela ali por longo tempo. A menina fica calada, não é vista, nada vê, nada ouve, não se senta, não se deita, não sorri, não chora, nada sente nem mesmo saudade do sol. Fica ali como se não existisse, sabendo existir e talvez esse conflito seja o mantenedor do estado de imobilidade e de angústia que a isola.
Saiba, a falta dela me cava. Sem ela caminho errática, não trôpega, porém. Embora até caminhe ereta, minha alma segue encurvada por pesados sentimentos de ausência e inadequação. O sol que ela se nega a ver, me nega aquecimento. Sem ela, o sorriso não chega a iluminar-me os olhos, coisa que é algo infantil. A voz não canta. Os passos, autômatos, encontram apenas velhos caminhos de calçadas com sombra. Mas sigo, bem treinada que fui por mim mesma na arte de camuflar. Ninguém percebe. Quase ninguém.
Assim estava eu, apartada da menina, quando na rua você me beijou a mão, pedindo que o reconhecesse. Até hoje não compreendo o motivo do seu gesto. Pega de surpresa, consumi alguns segundos sem saber se era mesmo comigo que você falava, se era a mim que se dirigia. Fiquei tentando ouvir de fato sua voz para encontrar o sentido daquilo que me dizia. Não entendia o porquê de você, aquele homem bonito, me destacar em meio a tanta gente. Eu??? Desconcertada, me sentindo imerecedora de sua atenção (dramática como às vezes sei que sou), acreditando que você se enganava, me desculpei e neguei o reconhecimento pedido. Assustada, me recusei a falar com você. Me afastei, mas levei comigo o calor de suas mãos nas minhas, a força e a delicadeza do seu olhar no meu. Mais adiante, como num complô com você, um moço, quase menino, me pediu que cantasse. Sorri para ele, apenas. Aos poucos, entretanto, a menina veio se aproximando, resgatada que foi por suas mãos maduras, ajudadas pelas do menino. Perto de mim a menina se alegra. Junto dela, posso ser grande.
Há poucos dias, sem que soubesse, você tornou a me surpreender. Você, aliás, não me conhece. Tampouco me conhecia antes. Eu que guardei comigo seu rosto, seu olhar e seu jeito que a mim parecem ternos. Por contatos virtuais, senti que me cortejava — peço desculpas por esse meu gosto por palavras antigas, estou aqui rindo de mim — mandou-me flores por imagens, lembrou-se de mim com palavras durante seguidas manhãs e noites. Fui alvo de seu interesse. Num momento, depois, quis estar comigo pessoalmente. Me assustei de novo. Outra vez, lhe virei as costas. Temo ter magoado a você que nem sabe me ter feito bem. Poderíamos ter sido namorados, fossem outros os tempos, fosse eu jovem.
Estou aqui pensando que devo estar imaginando romance inexistente, meio quixotesco mesmo. Não sei, pode ser. Na dúvida, preferia não senti-la, mas não conseguindo dela me esquivar, na dúvida, mando-lhe abraços agradecidos. Gostaria que tivessem sido físicos. Todos eles, demoradamente físicos.
Espero que estas palavras te encontrem por mim.
Final de junho
Resposta ao vento
Cara, ah… minha cara, sabe bem você que não há perigo de hoje uma mensagem perder-se nos caminhos percorridos pelos imaginários ventos mega. Sua mensagem, você sabia quando a balançou na rede, chegaria até mim. Você, jogando um bom jogo, sabia que suas palavras me encontrariam. Só não sei se de fato sou eu o destinatário delas, afinal, não sei quantos lhe mandam flores por imagens. Você é merecedora delas, e mais. Talvez, então, agora, moça bonita, esteja eu sendo quixotesco. Pode ser. Estou me divertindo com isto. Estou gostando da brincadeira que você, com ares de menina em crise, atrevidamente começou.
Devo confessar, assim bem de início, que não me lembro dessa estória do beijo nas mãos. Li e reli e fiquei achando isso um pouco fora de época. Para mim, entenda. Mentira, adoro beijar as mãos de mulheres bonitas, de início… Se você me reconheceu, aquele sou eu. Gosto disto.
Não, você não me magoou. Me afastei em respeito ao que senti fosse sua vontade.
Ninguém mais manda cartas. Estou encantado. Curvo-me diante de você (isto também parece antigo, não acha? Como você, estou rindo de mim agora, mas não retiro o que disse). Fosse eu jovem, fosse você jovem. Não somos, e que diferença fundamental isto faz, minha cara! Me aproximei de você sabendo que nenhum de nós dois é, eu quis.
Demorados abraços físicos te dou, repetidamente. Atrevo-me a beijar-lhe, não mais as mãos, não só as mãos.
Final de agosto
Erro de pessoa
A fantasia se salvaria em mim, caso não tivesse vindo. Ou vindo, que não me tivesse dito que viria nem onde estaria para ser encontrado. Sei que veio por vir. Sei que não veio por mim. Mas este é o meu lugar e essa informação você a tem. Então, tendo dito onde estaria e me chamando, acreditei que poderia estar ali um pouco a me esperar.
Te reconheci de longe. Quis ver seus olhos, escutar o tom de sua voz, ouvir as palavras que, uma vez ditas, revelariam o homem que você é.
Não somos mesmo jovens, constatei sem surpresa.
Você tem olhos lindos, deve saber bem. Isto me surpreendeu. Te olhei nesses seus olhos. Você, rápido, nos meus. Beijou-me novamente a mão. As palavras ditas saíram um tanto emboladas de sua boca. Você, como se reencontrasse uma velha conhecida, usando um chavão pobre e descabido para o momento, indagou-me de qual fonte da juventude me sirvo. Não gostei. Percebi que não me reconhecia. Dei, assim, por encerrado o contato. Me afastei. Você ainda elogiou meu vestido, com o que concordei, também gosto dele, por isto o escolhi para aquela ocasião.
Adiante, arrisquei olhar para trás. Você já tinha me esquecido, estava ocupado com uma moça a sua frente. Vi que beija as mãos de todas as mulheres. Vi que este seu gesto não tem raiz na cortesia, enxotada que é pela tentativa banal de sedução. Te ver bastou para eu entender porque naquele dia outro em que te vi pela primeira vez, beijou-me as mãos: eu era a mulher a passar por perto de você e não outra. Entendi, por fim, a razão pela qual tinha acabado de não me reconhecer: você vê a mulher como gênero, daí, qualquer uma serve. Você não observa a pessoa com quem está falando. Observa a si mesmo, um macho em ação.
Ali, te olhando de longe, dei por encerrada essa história, essa que sequer teve início. Mas, saiba, sou colecionadora de encantos. Guardarei comigo a indescritível sensação (embora falsa) de ter sido destacada por estes seus lindos olhos em meio a muitos e do beijo suave que me deu nas mãos. Só lamento pelos abraços não dados que bem poderiam ter chegado a ser longa e repetidamente físicos. Teriam sido inesquecíveis, assim como seus olhos.
Julianne Veiga é de Goiás, uma antiga e histórica cidade do interior do estado de Goiás. Casada, três filhos, três netas.