Largou os sapatos na soleira da porta e caminhou com os pés descalços. Frio cortante do chão. Era o momento de deixar as lembranças também na soleira e cair na cama até o dia seguinte. Mas antes era preciso conferir o conteúdo da caixa de sapatos, sempre depositada secretamente debaixo da cama. Tudo estava em ordem. Todos os embrulhos pequenos hermeticamente fechados com voltas inúmeras em fio de barbante encardido. Contava todos os embrulhos todos os dias. Quinze ao todo. Há meses não desembrulhava nenhum deles. Enquanto observava os pacotes, passava a mão no lóbulo da orelha direita. Crosta de sangue e pus que latejava.
O dia anterior trouxe sol e ventos mornos. Também uma pontada no tórax que reverberou por toda a semana. Quando a noite chegou com cheiro doce de árvore velha, já estava esgotada. O dia, de fato, fora uma ruína, uma torre destruída pelo raio poderoso de Netuno. Promessas e mais promessas foram proferidas diante do espelho. Nunca mais seria o que era, nunca mais usaria o que vestia, nunca mais diria o que contava com ares de menina ainda lilás e desconhecedora do mundo. Empacotou tudo o que tinha no quarto. Não se mudaria para lugar algum. Eram apenas os preparativos para o grande dia da trovoada. O grande dia da fuga. O grande dia da queda do meteoro fumegante. Esperança verde irlandesa. Vulcões em desespero.
Cada embrulho encardido debaixo da cama era fruto de dias gloriosos. Deveriam agora estar assim, lado a lado dentro de uma caixa de sapatos. Cansou de ser boneca, com cabelos longos e bem cuidados. Tesourou as madeixas na tarde de calor insuportável. No guarda-roupa, peças ralas e necessárias. O prometimento era repassado no cérebro a todo instante. Agora, à noite, com ventos gélidos e pios de corujas distantes, cumpria mais um dia sem excessos. Sem cores nas faces. Sem sobras na língua. Sem lombadas temerosas no peito. A necessidade de limpar os vulcões era diária. Um dia morno, bem devagar, após o outro. Sem estardalhaço.
Cada vez mais afastada da alcateia, a flor murchava com a língua de fora. Só uma semana havia se passado. Os embrulhos debaixo do leito ainda intactos. Todas as noites ela os tocava, os sentia. Imaginava-os todos fora do papel velho rosado. Fora dos barbantes imundos. O lóbulo esquerdo coçava, já cicatrizando. Eram muitos cortes, dentro e fora. A saliva sempre espessa, cheia de partes das promessas que não conseguia engolir. Agonias que subiam montanhas e se despencavam sem nem ao menos se deliciarem com a paisagem verde irlandesa. As promessas caminhavam a passos lentos. Afogavam-se exaustas, sem pedir socorro. Netuno já estava com o raio incandescente a postos. Outra ruína cambaleando mar adentro. Nascera náufraga. Sem lóbulos. Sem documento.
Na manhã seguinte, com tantos pássaros piando na relva, voltou para a frente do espelho. Refez em timbre inconfundível todos os comprometimentos de dias atrás. Todos foram repassados da língua para fora e do peito para dentro. Era a hora de recuperar a torre imensa das mãos de Netuno. Torre de pedras preciosas, construída com tanto esmero. Contou mais uma vez os embrulhos encardidos escondidos debaixo da cama. Eles ainda deveriam ficar lá por muito tempo. A eternidade. Cruzou o quarto vazio e foi ao banheiro. A soleira de pedra era boa para afiar navalhas. Ela nascera náufraga. Menina-lilás sem cor. O sangue pingava sobre os pés.
Sem lóbulos.
Sem pavilhão.
Sem martelo.
Sem bigorna.
O começo de uma longa estrada. Sem excessos. De dentro da torre, os barbantes se desatavam, e pediam pressa.
Munique Duarte nasceu e vive em Santos Dumont-MG. É jornalista sindical, formada pela UFJF. Tem textos publicados em sites, revistas e jornais literários. Lançou Espelho oxidado (contos) em 2014 e O salto do guepardo (romance) em 2015. Bloga em Textos Imperdoáveis.