A roupa era a mesma, já o corpo… Assoviando Drão, música preferida, nasce morre trigo, vive nasce pão, de frente ao espelho tentava fechar o colarinho, a papada resistia para ceder à pressão dos dedos tentando encaixar o botão na casa. O botão na casa foi encaixado, embora sentisse falta de ar até quando pensava. O problema seria o outro encaixe exigido por ela para mais tarde, depois do jantar de comemoração. Havia dois comprimidos de cor azul dentro do bolso da camisa branca social. Vestiu o paletó preto, o mesmo usado quando entrou na igreja para dizer sim, suando, tremendo. Deu meia volta e saiu correndo, pegou um táxi e nunca mais foi visto na cidade. Não, isso não aconteceu, apesar de ter passado na cabeça, tinha medo dela, da esposa. Uma namorada exigente, uma noiva sufocante que se tivesse um bigodinho ridículo debaixo do nariz completaria o perfil de Hitler. Tirania era o nome do perfume.
Quanto ao casamento, nada poderia ser feito vinte cinco anos depois e sabia disso quando borrifava o Channel Número Cinco já sem cheiro. Uma borrifada por ano, a primeira no dia do casório. Exigência dela, que nem sabia que tal perfume era feminino e deu de presente de noivado com essa proposta, usar uma vez por ano, a cada dia vinte e nove de fevereiro. Sim, casou num ano bissexto e bem que poderia estar fazendo sete anos de união e não teria essa porra de bodas de prata, usar esse paletó que nem fecha pela barriga de cerveja.
— Adamastor, que demora, parece mulher, porra. Bora jantar, meu filho. Tenho que comer logo por causa da gastrite e amanhã a prisão de ventre tem que passar, não aguento mais ficar sem ir ao banheiro.
Ser xingado, ouvir os palavrões cotidianos daquela gorda, cara de buldogue, verruga no queixo, a quem tinha de comer uma vez por mês, já estava acostumado. Odiava ser chamado de meu filho. Uma ofensa a sua santa-mãezinha-que-Deus-a-tenha, lembrava dela chamando meu filho, fiz seu jantar, meu filho está lindo, meu filho super inteligente. Medeia não era a mãe, passava longe da mulher que o pôs no mundo. Seguiram no carro, ele dirigindo, ela no banco de trás, gostava de passar a imagem de ter um motorista particular. Ao mesmo restaurante da nossa lua de mel, meu filho. Falou e deu um arroto pestilento, o motorista teve de abrir a janela para o cheiro sair.
O restaurante decadente. O mesmo maître, que agora tinha o bigode e os cabelos brancos, também era o único garçom, chefe de si mesmo, controle de custos. As paredes descascadas, o cheiro de mofo, aquele lugar parecia a vida de Adamastor e ele sabia disso. O garçom acendeu as velas que boiavam em cadinhos de vidro. Aceitam uma bebida? Quero um uísque. Nada disso, meu filho, se beber hoje não funciona mais tarde. Sabe, seu garçom, Adamastor tem dificuldades de ereção desde jovem e se beber piora. Traga para ele um suco de maçã com hortelã e para mim um conhaque. Hoje é dia de festa, sabia que estamos fazendo bodas de prata? Diga ao Cheff que capriche, viu?
O ar-condicionado quebrado ou seria o excesso de tecido adiposo que o fazia suar molhando primeiro a região das axilas, depois a barriga e as costas? Tomou o suco de hortelã fazendo caretas. Ela entornou o conhaque, pediu outro e outro e mais outro. Meu filho, você lembra da nossa lua de mel? Você, tão gentil, teve de sair de madrugada do hotel para comprar meu cigarro. Eu apaguei e deixei fora do quarto naquela nevasca, muito engraçado, lembra? Sim, lembrava do frio e da pneumonia, os dias internado no hospital para tratar do pulmão, porque sua majestade quis fumar às duas da manhã. Garçom, decidimos o prato, pode anotar, por favor? Vamos comer salmão com batatas souté ao molho de ervas tropicais com pitadas de queijo emmental. Esse prato nós comemos todos os anos de aniversário de casamento.
Havia uma coisa pior do que ser chamado de meu filho. Era salmão com batatas souté ao molho de ervas tropicais com pitadas de queijo emmental. Vinte e cinco salmões atrás poderia ter desistido desse jantar, desse restaurante caindo aos pedaços sem nenhum cliente afora os dois, daquela mulher asquerosa, bastava ter fugido da cidade, mas teve medo da reação de Medeia, ao se saber grávida e abandonada pelo noivo. Teria de aguentar, mastigar o peixe que passaria travoso pela garganta já apertada com o colarinho e a gravata de listras em preto e branco, deu zebra, Adamastor, aceite.
Vinte e cinco primaveras eu aguentando um pamonha feito você, meu filho, sou uma heroína. Quando falo no salão com as manicures sobre sua impotência, a barriga caindo sobre a cueca nem dá para ver o pau, que é pequeno mesmo, elas gargalham e sentem pena. Balanço a cabeça e digo, fazer o que? E quando conto no trabalho do seu problema com gases? As colegas já te chamam de Adamastor Luftal, acho bem espirituoso o apelido e tem tudo a ver.
O garçom traz o salmão com batatas souté ao molho de ervas tropicais com pitadas de queijo emmental. Adamastor começa a comer e a suar, suando e comendo, uma azia, o gosto do peixe de cor rósea marcando a língua, o cheiro de mar, de sargaço, como se pescassem e servissem cru mesmo. Uma delícia, concorda, meu filho? Você jamais teria a capacidade de cozinhar assim, devia me agradecer por ter feito com que desistisse da carreira gastronômica e prestar concurso para contínuo do Banco do Brasil. A artista da casa sou eu, pinto, escrevo, o sucesso paga nossas contas, porque, aqui para nós, meu filho, nasceu para ser perdedor, um fracassado e brocha, um continuozinho de banco. Vinte e cinco primaveras de união, acho lindo isso.
O cheiro do salmão se mistura ao do mofo nas paredes, o prato era o mesmo, o garçom, o lugar, a mulher a humilhá-lo, que destruiu os sonhos de uma vida profissional, casou por estar grávida e depois fez um aborto com histerectomia porque não queria ter filhos, sem consultar o marido, sem querer saber se Adamastor teria por um segundo o desejo louco de ser pai que sempre teve. O botão explodiu do colarinho e pode respirar normalmente.
Chamou o garçom e mandou tirar aquela merda de prato da frente dele e trouxesse um uísque com duas pedras de gelo. Pegou a faca na mesa e enfiou sem pena no pescoço da esposa. A cabeça e o sangue caíram no prato de salmão. Não, isso não aconteceu, apesar de ter passado na cabeça. Ser preso por causa daquele mulher seria a última prova de sua estupidez.
— Meu filho, você não…
— Cale sua boca, agora. E nunca mais, escute bem, nunca mais me chame de meu filho. Aliás, nunca mais me chame de nada, porque daqui para frente tratará dos assuntos do nosso divórcio apenas, repito, apenas com o meu advogado.
— Adamastor, que é isso, está louco?
— Sou louco, sou muito louco, apenas alguém insano poderia ter casado com uma mulher feito você. Acabou, essa vida cheirando a mofo, meu emprego ridículo, esse restaurante bosta, comer esse peixe fedorento e você, entende? Estou fora dessa vida de merda. Vou me matricular no curso de gastronomia, morar sozinho, jogar fora essa paletó velho, o perfume vencido. Use seu dinheiro ou arrume outro idiota para comê-la todo mês. Você agora é quem paga a conta.
Levantou, colocou os dois viagras no bolso da camisa do garçom de boca aberta e saiu do restaurante sem olhar para trás. Tomou um táxi para qualquer lugar longe dali e foi assoviando. Morre nasce trigo, vive morre pão…
Rômulo César Melo, nascido no Recife em 1976, é procurador federal, escritor, poeta, autor de dois livros de contos publicados, Minimalidades (Ed. Bagaço, 2013) e Dois nós na gravata (Ed. Cepe, 2015) — vencedor do II Prêmio Pernambuco de Literatura e premiado com menção honrosa no concurso Vânia Souto Carvalho da Academia de Letras de Pernambuco; publicou, ainda, o livro de poemas Bad Trip (Ed. Cartonera Aberta, 2017).