seis poemas de Gabriel Cortilho

doar-se

se for
para oferecer
meio pedaço
do coração
sem
pôr a alma
nas palavras
prefiro, então,
não doar o meu ser;
pois não há, no que digo,
a entrega das vísceras
fico sozinho,
mas, ao menos,
não descuido
do outro
amar é doar-se
e, quando em migalhas,
não serve nem sequer para
alimentar a fome dos pombos

amor fati

Para Camila

nesse
mundo caduco
repleto de posses
e tão poucos

amores

amo-te
sem atá-las;
assim, tuas mãos
irão, naturalmente,
percorrer outros

corpos

fixar-se
na necessidade
da solidão

ou retornar, serenas,
ao nosso cais
aberto

diante
de gaiolas afetivas
mais vale a resistência
de um pássaro

liberto

conjugação

fizeram uma cesárea
na barriga da epifania
em busca da ideia genial

e, logo em seguida,
colocaram uma arma
no peito límpido do amor

impor força brusca
naquilo que se deseja
não gera senão
um poema morto
vazio de respiração

tempo não é dinheiro
nem a vida um fast food

Liberdade se conjuga
sempre no plural

há quem diga que termina
quando a do outro começa,
mas ela apenas floresce
quando somos, todos,

L I V R E S

as lesmas e a civilização

adeus ao mundo dos homens
que fabrica servidão, atentados
quero carros, televisões
e automóveis

calados

ao menos hoje,
não falo em miséria,
classes sociais, guerra
quero o bosque de ar puro
os pés cravados na terra

o vento gélido
a realidade oculta

ter nos poros a apoteose
o enigma do geóide que flutua
com seus pássaros coloridos
e besouros de casca dura

o verde que sinto
é maior do que o cinza:
a poesia se encontra
no sexo na lesmas

entrelaçadas

metafísica

um beijo não é só a troca
dos lábios que se encontram
— faz nascer outro mundo;

tampouco o abraço,
não é um contato
qualquer

até mesmo o ateu
um sujeito racionalista
constata a alquimia
dos corpos

e permanece quieto,
pois vê que há, no âmago,
lá, no sopro da inquietude:

os fios
esquecidos pelos olhos
no novelo oculto dos deuses

estranhamento

confrontar o ego
desvela fissuras
no teu cristal

freud chamou
inconsciente
jung disse

alma

e percebes
que, no fundo,
és desconhecido
dentro de ti mesmo

um estrangeiro
em teu frágil

corpo

Gabriel Cortilho (1992- ) é poeta e professor de História em Araraquara, no interior de São Paulo. Possui como referência central a poesia de Fernando Pessoa. Tem poemas divulgados pelas revistas O Poema do Poeta; Mallarmargens e Escrita 47 (Guatá- Cultura em Movimento). Organiza seus escritos em livretos, sendo eles: Atemporal/Cronológico (2014), Transitório (2015), A Transa dos Besouros Verdes (2016), O Poema e a Cachaça (2017), Javali Radioativo (2017), A Carne e o Licor de Moscas (2017), Os Fios Esquecidos Pelos Olhos (2017), O Poema Entre as Ruínas (2018).