a incerteza que nos move
I.
(A recusa de validade a todas as hipóteses
constitui um ato de pensamento — e de fé)
II.
Nos Ensaios, Sartre diz que a existência
é um frêmito no ar;
rastro apagado na areia ou vaga dissipada
no espelho; oblívio, rosto contorcido e submerso
em mar,
__________nuvens
_______________e urna,
ó porvir de eternidade e vazio
a existência —
_______________este acaso furioso
que se arroga um estatuto e uma dignidade,
em cujo propósito estancou sem saída
porque cresceu,
deu por si e
multiplicou-se
vorazmente à beira da estrada, sem compreender
o que estamos fazendo aqui afinal,
desmesuradamente apaixonados pela vida
e por constelações extintas,
enquanto nos arrojamos à praia
com qualquer despojo do navio
como se do que trouxéssemos de lá
houvesse arqueologia possível ou
se escavássemos a fundo os vestígios do nada
subitamente este desapareceria em meio
às palavras
III.
Suspeito, porém, de que tudo seja
mais um jogo à força do uso — e da crença,
a de haver ao menos entre um e outro sujeito
um fio ou liame comum que nos restitua contra a completa
arbitrariedade da falta de Deus
e assim comuns, arraigados na falta e nos deveres da falta,
tentamos um campo de virtude sem imortalidade,
forjando entre pedras a lavra
e nesta ordem de aleatórios meu coração escalavra
_____________________________________sem rumo
entre Delfos e Tirésias,
Ovídio
e a Melancolia,
aferrando-se ao fato que nenhuma razão ou cosmogonia desbasta,
o de não haver ninguém retornado para tirar à incerteza
a sua íntima condição, de tempo e glória
e, porque não estamos consumados em certeza,
como um curso extinto de rio ou uma encosta
à força do vento, até a planura e o sal,
porque não quedamos apenas ao sopro do ar
(se sopro há)
balouçando como o canavial nos morros
ou os trigais no campo
por isto não somos à força de ser
e o nosso ser — uma ferida do tempo
que não cicatriza nunca
convite
A terra abre suas pálpebras
e oceano e céu são um convite ao fim do mundo
os seus cílios são brancos cúmulos na dissolução da tarde
há um incêndio de sombras brandas e sangue púrpuro,
sem qualquer ruído
é apenas o sol deposto e a passagem do dia,
um estremecimento forte da pele, um respiro
mais fundo e as velhas questões acossando
tua consciência irredutível de estar vivo agora
e não depois
então diz adeus, despe a tua condição, forasteiro
deixa que a tua matéria seja a água e o esquecimento
do gosto acre da saliva deglutindo a seco
o contato incômodo com a existência
os dias que foram, os dias que virão
teu medo mais derradeiro
tua angústia mais inominável
deita-os na coluna de espuma
enquanto o corpo é envolvido pela escuridão,
que não te pede absolutamente nada,
a não ser o silêncio profundo da tua alma
e das tuas obsessões calidamente cultivadas
escuta só o corpo latejando na concha
fria do universo, reverberando abandonos
e o êxtase da solidão
existe apenas esta canção de muito longe,
que todos os homens, em todas as épocas,
já ouviram, sentindo a escassez infinita
de si ante o pálio frio e espectral das estrelas
este ar, este mar não te saúdam
mas te recebem
se tu deixas a ti mesmo para trás
encarando o silêncio
(a partir de P. Auster)
esta paisagem, os morros verdes,
o céu parcialmente azul
pairam ante o olho nu
com sua textura fechada
a que palavra alguma dá a face
aquilo sobre que te direi já não será
o que está aí, na manhã indiferente
ao anseio de dizer —
sobre a solidez suave deste verde
e por cima deste verde um azul conspurcado
de nuvens e poros,
como um mar invadido subitamente
de espuma
no balé livre das árvores,
o dia deslizará em direção à noite
eu deslizarei em direção à noite
mas a palavra não é uma estaca
no decurso do tempo —
é uma via franqueada
ao que ainda não existe mas está lá,
prestes a dissolver-se como uma vela
que o vento reflui
pois tudo consiste nisto, na compulsão
de dizer
não o que o dia silenciosamente guarda
na sua esfinge desde sempre aberta
mas dizer a experiência única, solitária e abissal,
de que saltamos para a palavra, revolvendo
o enxame de asas e caos, revolvendo
mais fundo ainda, sob o excesso
ou o vazio, o silêncio esquivo
e crepuscular,
revolvendo, no mais fundo
e derradeiro, o espaço
anterior ao silêncio,
onde me encontro
Laís Araruna de Aquino nasceu no Recife, em 1988. Formada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, é procuradora do município do Recife. Tem poemas publicados em revistas digitais.