safo no despacho
cortarão minha cabeça
na próxima guilhotina
duas quadras à direita
três dedos de canha
minha cabeça será cortada
e exibida aos leões desdentados
da praça pública
uma bomba d’água
e teu coração dando murros
na ponta de minha adaga
cega
na próxima guilhotina
e exibirão aos leões desdentados
para que eles vejam
o que acontece
com quem fere
mas não mata
cortarão minha cabeça
e com meus olhos levarão
toda beleza que o mundo me deu
teu coração dando murros
na ponta de minha adaga
cega
exibirão minha cabeça cega
amigos
enfeitem com flores e velas
e deixem que as onças devorem
meu corpo
na beira do cais
meus punhos
meu sexo
meus punhos
meu sexo
a ponta de minha adaga
cega
os porões
volta e meia
eu abria a janela
e o meu mundo dava
bem no meio do mundo dela
volta e meia
eu olho pra ela
— que não tem porta
e nem janela —
e escondo os cadeados
da casa
devolvo as chaves
arranco fora
as maçanetas
eu quando
eu olho
ela sótão
só
quero esquecer
que há no mundo
coisas
que se abrem
xucra
Estou a serviço do que sinto
Em tempo integral
presto trabalhos forçados
às minhas emoções
Num dia desses de exaustão
dei por mim que estivera sendo
até então
escrava
Pensei naqueles que seriam os livres
e não me desesperei
Os meus danos valem mais
que os ganhos deles
De tanto dar de comer ao sal meus garrões
e às picadas este couro escuro e frágil que me veste
Sei pela ferida
em que chão mora o repouso
qual querência abriga o meu gozo
Porém, pois, que ser cativa não é sorte
que se negocie com o destino
Tanto que, quando eu fujo
cheia de nortes
catando um tino
o meu coração capitão do mato
me captura
Açoita e para
Açoita e para
É o jeito que encontramos
de nenhum dos dois se perder
nessa planície escancarada que é a vida
de quem não busca esconderijo.
| poemas do livro Os baobás do fim do mundo (2011; 2015). |
Marília Floôr Kosby é uma poeta gaúcha, nascida no extremíssimo sul do Brasil, em 1984. É autora dos livros de poemas mugido [ou diário de uma doula] (2017), Os baobás do fim do mundo (2011; 2015) e Siete colores e Um pote cheio de acasos (2013), e do ensaio Nós cultuamos todas as doçuras: as religiões de matriz africana e a tradição doceira de Pelotas (2015) — obra contemplada com o Prêmio Açorianos de Literatura 2016 e com o Prêmio Boas Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial IPHAN, 2015. Seus poemas estão em diversas revistas brasileiras de literatura e arte. É doutora em antropologia social, com formação complementar em futebol amador. Coordena encontros de vivências de poesia e o curso de escrita Buscando a letra xucra.