apólogo da identidade, conto de João Paulo Parisio

Eu era uma velha folha de papel esquecida numa escura e maciça cômoda de argolas de ferro. Rochosa ilha de detenção abandonada à própria sorte, governada pelos sicários. E eu era uma folha vazia. Apenas amarelecera e adquirira manchas senis com o tempo. Durante eras, os cupins deitaram em mim o fino pó da madeira, as traças confabularam do lado de fora, passando ao largo. São um tanto estúpidas, essas tracinhas… Como o cheiro de naftalina na gaveta sobrepujava o meu, jamais cogitaram investigá-la. Bitoladas. As baratas, odiosas, tenazes, astutas baratas, é que me encontraram. Trezentas e trinta e três gerações de baratas transmitiram umas às outras o conhecimento de minha localização. Que terror me tomava quando eu sentia seu cheiro inconfundível! Áspero era o som de seus passos enquanto se aproximavam, e mesmo na escuridão eu discernia suas silhuetas, os grandes olhos negros, gulosos, o frenesi das antenas, e estremecia de asco quando andavam por cima de mim, arranhando-me com as pernas serrilhadas. Se defecavam sobre meu corpo ou me mordiscavam, eu quase sempre desfalecia. Pura maldade. As baratas, que vivem na fartura? Elas jamais precisariam me incluir em sua dieta. O mundo lhes pertence, sempre volta a ser herdado por elas.

Mas nada se compara à tortura que me impôs La Bruta, uma barata imensa e negra que certa noite adentrou minha masmorra, espremendo-se pela passagem entre o teto e a parede. Aproximou-se devagar, perguntando cínica:

— O que há aqui? O que temos aqui? Quem mora nesta casa sombria? Ora, mas vejam! Vejam só! Uma velha inquilina preguiçosa! Ou será aleijada? — e, mudando de tom, sussurrou com um hálito seco e nauseabundo: — É melhor você se levantar e correr, caso contrário vou roer você todinha…

Depois de regozijar-se um pouco com meu desespero, começou de fato a roer-me, mas muito, muito lentamente. Com igual vagar, triturava cada um dos pequenos nacos, chiando de prazer. Como é ignóbil o chiar de uma barata! Mas logo, para meu absoluto espanto, se retirou. No entanto, o som que emitiu, uma espécie de riso de mofa contido, me deixou profundamente alarmada. Meus temores não se revelaram infundados, pois na noite seguinte La Bruta tornou a entrar em meu cárcere e devorou-me um pouquinho mais. Então, após sucessivas visitas, quando a loucura já se instalara em meu ser, ela invadiu a cela debatendo-se e revirando-se, estrebuchando loucamente da maneira que só as baratas fazem, produzindo um estertor pavoroso. De sua bocarra escorria uma baba viscosa.

— Envenenaram-me! Envenenaram-me! — gritava, só que ao me alcançar recuperou sua malícia: — Mas antes de morrer vou terminar esse servicinho…

A baba espessa pingou em minha face, e La Bruta passou a devorar-me selvagemente, arrancando grandes bocados. Eu podia sentir seu coração pulsar, e ouvia estalos que vinham de dentro de seu corpo. De repente começou a vomitar e ter convulsões — vomitou-me em mim! Depois caiu dura, as seis pernas para cima, dando estirões. Feito um cavalo. Eu mesma estava semimorta, em estado de choque. La Bruta foi a barata mais cruel que conheci. Mereceu o fim que teve, mas eu não merecia ter ficado debaixo do seu cadáver, do qual logo começou a escorrer uma substância amarelada. Tinha um cheiro atroz, acre. Pensei que eu mesma morreria envenenada. Ela inchou como um baiacu, liberou gases e foi minguando até ficar achatada parecendo uma omelete. Depois começou a se desmanchar. As pernas caíram, a cabeça se separou do corpo. Graças a Deus, quando o veneno se tornara inócuo ou se evolara, as formigas — também ardilosas — vieram, ergueram-na nas mandíbulas e a carregaram…

Apesar de ter passado por todas essas coisas eu afirmo que elas não eram o pior de tudo. O pior de tudo, ah, juro pelas minhas duas páginas e pela minha mísera espessura que o pior de tudo era a solidão e o desprezo. Esses males, sim, me roeram quase inteira. Às vezes El Carcelero depositava sobre mim centenas de folhas novas, branquinhas e frescas. Mesmo deliciosas de tão tenras. Para elas, minha presença, minha existência, eram um insulto. Eu era um monstro, um pária, desfigurada, imunda, carcomida. Não ouso mencionar o primeiro apelido que me deram. Ele fazia referência à minha, digamos assim, incompletude. Restrinjo-me ao segundo: eu era La Momia.

Essas folhas, que sonhavam em conjunto virem a ser um grande romance ou tratado, iam partindo uma a uma, ou em pequenos grupos, tremulando de alegria na mão de El Carcelero — adejando, dir-se-ia —, até que eu ficasse sozinha novamente no cárcere escuro e fétido. Imaginem, caras irmãs, imaginem o que é passar anos e anos em companhia apenas dos próprios pensamentos, monologando aflitivamente, ser um papel vazio, sem palavras, sem números, sem traços, sem nada enfim. Tive sérios problemas mentais, esquizofrenia, claustrofobia, longos períodos — necessários — de catatonia, e passei a desejar a morte, desejar que La Bruta tivesse terminado seu servicinho sujo. Sonhava com aquele clássico e pavoroso fim: ser lentamente queimada na chama de uma vela, contorcendo-me até que restasse apenas um cadáver carbonizado. Por isso, minhas irmãs, vocês são afortunadas. Talvez um dia vocês, onde minha história pouco a pouco se decanta, sejam célebres. Daqui a um ou alguns séculos pode ser que vocês, os originais desse conto, sejam relíquias expostas num museu, reproduzidas aos milhões pelos quatro cantos do mundo.

Bem, mas ali estava eu, só, com a mente vazia, uma velha vegetante, quando a gaveta, rangendo muito, abriu-se pesadamente. Porém não foi depositada mais uma ou meia resma. Foi uma mão esquálida quem entrou no aposento junto com a réstia que a delineava em silhueta, como um arqueólogo que enfim descobre a câmara mortuária do faraó. Ao deparar-se comigo, recuou assustada. Voltou a aproximar-se, cautelosa, examinou-me um pouco e me puxou para fora. Envolveram-me a luz intensa e o ar fresco do mundo externo, no qual pairou, brilhando, o pó que me cobria. A claridade me cegou, mas eu não dancei como as folhas jovens, pois todos aqueles anos de cativeiro tinham-me deixado entrevada. Veio uma brisa suave, levando de minhas faces detritos acumulados ao longo de séculos. Quase de imediato comecei a sonhar, imaginar-me o enxerto de um capítulo ou a abertura de um conto, pois só uma inspiração devastadora o teria levado a superar a repulsa e tomar-me. Disso vocês podem depreender em que medida nós, mesmo depois de velhos, podemos ser insensatos. Servir de receptáculo a uma ridícula carta de amor, de qualquer jeito, já redimiria toda a minha dor, faria ter valido a pena todo meu calvário.

Fui colocada sobre uma mesa e quando El Carcelero se debruçou sobre mim, olhamo-nos de frente. Tive um choque, a impressão de que também ele estivera numa gaveta todo esse tempo. Por mais que tivesse vivido, viajado, experimentado. Os cabelos estavam encanecidos, os olhos rajados, as íris encobertas pela caligem. Os sorrisos e os prantos haviam se fossilizado em seu rosto sob a forma de rugas. Seu corpo minguara no fogo lento do tempo. Ficamos ali, eu e El Carcelero, calados um diante do outro. Talvez não tenha demorado muito, mas eu mal podia suportar a ansiedade. Sentia-me uma adolescente. Notei que no seu semblante estampava-se uma vasta e desalentada angústia. Compadeci-me intensamente daquele homem velho, e demorei a perceber as lágrimas que aos poucos se condensavam — e podiam traspassar-me, moles espadas. Antes disso, entretanto, ele enxugou os olhos com os nós grossos dos dedos e voltou a fitar-me. El Carcelero tomou da caneta-tinteiro — essa sim permanecera jovem, conservara a vividez de seu negro-e-dourado, talvez depois de muitas gerações de cargas —, e percebi que suas mãos estavam cobertas de manchas senis, a exemplo de meus lados. Lentamente, hesitante, desceu-a sobre mim, e uma vez que começou a escrever, estabeleceu a conexão comigo, fê-lo febrilmente, traçando a partir de meu canto superior esquerdo as seguintes palavras:

De perfil és um fio,
de frente face vazia,
ao nível dos olhos,
como agora te olho
debruçado sobre ti,
és árida, pálida planície,
onde atiro minhas sementes
como um camponês demente
que espera cultivar no deserto
uma luxuriante floresta de sonhos
em que se possa caminhar desperto
e que mesmo examinada de perto
não revele seu cunho de ilusão

Eu experimentara uma sensação inédita enquanto a ponta aguçada da caneta me premia, uma dor transmutada num prazer intenso demais, quase intolerável, que fez meu corpo quase romper-se, e o som rascante do atrito entre nós era a expressão sonora, musical, por que não?, disso. Eu, La Momia, estava tendo um orgasmo, meu primeiro orgasmo, na velhice. A simples mecânica do atrito, entretanto, não teria sido capaz de produzi-lo. A concomitante geração em mim do sentido do que se escrevia é que dera-lhe esse poder, como se árvores inteiras, com cipós, bromélias e correspondente fauna, crescessem em meu ermo de uma hora para a outra, o sentido que embora particípio passado no transe da leitura converte-se em vir-a-ser — virar ser. Senti-me reconciliada com o insensível universo. Nem sabia que ele escrevia poemas, mas apenas aguardava que o concluísse, cravando o ponto final, e assinasse o seu nome, que eu agora estava disposta a perdoar. Se era bom ou ruim, se seria publicado, se teria acolhida favorável entre críticos e leitores, se seria lembrado no futuro, já pouco se me dava.

Em meio à felicidade, entretanto, notei que El Carcelero me olhava de um modo peculiar. Eu nunca fora olhada desse jeito. Ele estava relendo as palavras que tatuara em mim, examinando-as uma a uma, revirando-as em sua mente como se revira uma pedra na mão, posto que com efeito palavras são objetos tridimensionais, ou mais. Sorriu amargamente, e seu rosto assumiu uma expressão irônica, autoirônica. Senti uma pontada no coração ante o olhar que me desferiu então, pois esse, esse eu já conhecia.

— Canalha! Canalha! Demoraste todos esses anos para me dar uma identidade e irás tomá-la num segundo?! — gritei, roufenha.

— Eu não sei da minha, posso te dar uma?

— Seu poema é medíocre! Eu nunca li um poema tão medíocre! — acusei, eu que nunca lera um poema, e tenha sido por ofendê-lo ou convencê-lo, ou as duas coisas, subscrevi assim minha pena de morte.

Por um instante vi El Carcelero com os olhos de La Bruta na ocasião em que entrara chiando moribunda, um demônio, e no seguinte experimentei uma dor pior que a causada pela mais cruel das baratas, uma dor semelhante à do condenado quando é cortado da genitália à garganta pelo instrumento do verdugo. Meu corpo produziu um som terrível ao ser dilacerado. Notem a violência que há nesse verbo: rasgar. E a dor se repetiu várias vezes, dividindo-se mas multiplicando-se como os pães do milagre, antes que El Carcelero atirasse meus pedaços pela janela e eles se espalhassem em desesperada fuga, cambalhoteando de terror. Ao longe deviam parecer uma revoada de pequenas borboletas. Caíram uns distantes dos outros e assim, transidos de frio, espelhos da solidão uns dos outros, jazeram, até que a noite veio, uma chuva os dissolveu, a terra os tragou, fazendo de mim esse puro espírito extraviado. Meu único consolo é não ter sido ele a escrever estas linhas em que me encarno. Seria, se ele não tivesse, sem querer, me concedido uma dádiva. Tendo me tornado ou retornado à Ideia, tudo que um dia já foi escrito, não só em folhas de papel, mas no continuum que vai de tabletes de argila da Mesopotâmia a tablets do Vale do Silício, está em mim, como numa gota o oceano, numa célula o genoma, num homem o universo. Folha de papel, biblioteca de Babel, imaginem o quanto pude me divertir com as páginas escritas pelo meu pobre e prolífico carcereiro, como quem observa o desengonço e o empenho dos primeiros passos de uma criança.

João Paulo Parisio nasceu em 4 de setembro de 1982, no Recife, Pernambuco. Estreou com Legião Anônima, contos, em 2014. Em 2015, lançou Esculturas Fluidas, poemas. Ambos pela Cepe Editora e incluídos na seleção de melhores livros do ano da Tribuna de Santos. Tem textos veiculados em publicações literárias, como o Pernambuco e o Rascunho, e sites como Interpoética e O Recife Assombrado. Participa ainda este ano do segundo volume de Ficcionais, em que “escritores revelam o ato de forjar seus mundos”.