leoa
olhando bem a leoa
sequer parece se reconhecer
como leoa
parece mesmo é com as facas
que guardo na cozinha
e não cortam a si mesmas
gosto do deserto
Gosto do deserto
É o que eles querem que eu pense
Não posso esquecer a água
Nem de dividir a água
Não posso esquecer as sementes
Nem de regar as sementes
Os homens me emprestam suas belas ferramentas
Eu planto eu germino eu colho
Eu incorporo restos culturais
O solo é árido
Não posso esquecer de repor os nutrientes
É importante pensar no clima nos custos e na área mínima
Os homens do deserto levam tábuas, ciência e todos os dedos
São eles que ligam tudo a um sentido
Por onde vão surge um lugar que não havia
Eles criam a si mesmos
E também as suas belas ferramentas
Não posso esquecer de devolver as ferramentas
E na saída dar meus cumprimentos
Minha função é vigiar vegetais
Não posso esquecer de dividir a colheita
A casa, a inspiração, os pés e as mãos
Nem a luz mínima
“Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema”
Sorrio enquanto levam pela mão minha criança
Ergo o rosto, fecho o caderno e inspiro profundamente
Eu me lembro de quando fui me deixando
poesia
nunca escrevi
como se da poesia inflamasse o fogo
apenas recolho cascalhos gravetos madeira
e empilho
e. e. cummings
não há pílulas que previnam esse atavismo
de nos pendurar pelas chuteiras
você amarra com força os cadarços
e pensa no fim das contas
qual seria a graça de estar sóbrio
aposto que hoje arruinaram seu dia
aposto que hoje você comeu formiga
e pensou hm que azedinha
sonho que saímos da floricultura
com pintassilgos e dentilhões
sonho com cebolas gigantes
ao lado sua tristeza física
penso que o significado disso
pode ser nenhum
penso que o significado disso
pode ser carência de vitaminas
amo as rebocadoras sem escrúpulos
diante dos motoristas em desespero
amo o jeito como algumas mulheres
odeiam os homens
as visões nunca param
e quando estendo os braços
é em parte porque quero alcançar o lugar
onde a água se junta a outra água
em parte porque aposto que você se trancou
no coração de outra escritora
fora esse sigilo estou em suas mãos
do mesmo modo não tenho defesas
quando me convidam pra comer de graça
ou me fazem cafuné fora de hora
esbarrei no seu segredo
e até agora me sinto bem
você faz comigo
o que a folha em queda faz
ao coração de e. e. cummings
t. s. eliot
resquícios do fruto amargo entre os dentes
abrigando sua ausência
o futuro é uma canção entoada pela sua voz esmaecida
sua garganta agora se confunde com a garganta escura do mar
onde ainda posso escutar seu lamento
enquanto uns partem outros se acomodam entre as folhas
amarelas de cartas jamais enviadas
sonhei que descansávamos em leito inoceânico
nunca remado
despojados de tudo
a violência não nos vitima
como a onda às rochas
o movimento não nos consome
sonhei que o mar não nos julgava
e nenhum outro tribunal
gosto de você
gosto de você
como gosto da teoria das cordas
dos buracos de minhoca
e dos buracos brancos
que são o avesso dos buracos negros
e permitem que o universo permaneça
em constante expansão
na prática não existe
nenhuma comprovação
dos buracos brancos
mas você sabia que um par de partículas
subatômicas
como um elétron e um antielétron
agem como se estivessem entrelaçados
telepaticamente
e bastaria um computador
maior que o universo
e átomos do nosso corpo
entrelaçados a átomos livres
para que pudéssemos nos teletransportar
para qualquer lugar do multiverso
gosto de você
como gosto das coisas que o homem ainda não alcançou
Yasmin Nigri (1990) é carioca, mestre em filosofia, artista visual, colaboradora da Revista Caliban, cofundadora e integrante do coletivo Disk Musa, e youtuber no canal Alokadostutoriais. Os poemas aqui publicados pertencem ao seu livro de estreia, Bigornas, a ser lançado em 2018 pela Editora 34. Integra também a antologia 50 Poemas de Revolta, lançada em 2017 pela Cia das Letras.