quatro poemas de Ruy Proença

a vida que eu vivi deu-me um amor

Para Marisa

o relógio do amor gira ao contrário. o tempo fora do tempo. minha amada é a paisagem dentro do retábulo. é o pássaro inominável cortando o céu. abaixo do pássaro, o mar às vezes é remanso, às vezes, tumulto. meu amor é um ser com asas. um dia o sol se põe no mar e quedamos extasiados atrás dos óculos de sol. outro dia, as nuvens ou as asas escondem o sol e debulhamos lágrimas que se somam à chuva. ainda agora ouço as ostras trabalhando em sua oficina de pérolas — dor e doação. acima da linha d’água um colar de pérolas flutua no ar e se ajusta ao colo de minha amada. quantas vezes me envolvi nesse colar a ponto de me afogar. todo dia é dia santo. vem, meu amor, caminha sobre as águas, sai desse retábulo. vem e me abraça. me beija. tatua seu arpejo nas cordas de meu desejo.

(Com Mário Faustino, Farnese de Andrade e Rubem Alves, ao som das 6 suítes para violoncelo de Johann Sebastian Bach)

antideus

um raio começou a ser gestado no céu entre nuvens adiposas, onde pastam elétricos porcos-espinhos. uma faca, uma tesoura, uma baioneta de megavolts fura a atmosfera, rasga a vertigem da hora, atinge a medula do homem sentado à mesa, à luz do abajur, todo transpiração, deitando palavras sem nexo sobre o papel. o cerne do homem implode e, no milissegundo seguinte, o buraco negro de sua alma explode com a máxima violência. farpas de costelas atravessam o cômodo e cravam-se nas paredes. fêmur, tíbia, ilíaco arrebentam as vidraças, destelham a casa, buscam o subsolo. de todo absurdo, de toda morte, nasce um peixe, um pássaro, um inseto, uma gramínea. a vida quer viver, quer felicidade, quer amor. rebelde, desafia cara a cara a ira dos deuses.

peligro

Montevidéu. o muro que adentra o mar mais faz pensar em um quebra-ondas do que em um píer. nele, em tinta branca, está inscrita a palavra peligro. nadadores atravessam a enseada, cargueiros deslocam-se no horizonte, enquanto pacientes, sentados na amurada da praia, de frente para o mar, esperamos o sol se pôr. no entanto, a palavra peligro. há um risco iminente de que não nos damos conta? onde? miro o mar sem ondas, miro os grafites no muro que circunda a praia, miro o alto dos prédios, miro a avenida da orla e o calçadão, que aqui chamam rambla. miro minha companheira. não é de hoje a onda gigante que quebra no fundo de nosso olhar. peligro. que ameaça nos ronda?

receitas

tinha compulsão por laranjas

sentava-se na varanda
com a bacia no colo
e a faca na mão

só parava de chupar
quando não havia senão cascas

lambuzava-se toda nos gomos
até a exaustão

com o tempo
a pele foi amarelando

foi a vários médicos

só sarou
quando uma amiga lhe prescreveu
sessões de masturbação

| receitas, em coautoria com Marisa Proença. |

Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007); Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg (Espectro Editorial, 2015). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas (Editora 34, 2007) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).