das perdas, conto de Leila Guenther

Por alguns momentos, sentado num dos últimos bancos, ele teve a impressão de que o veículo tombaria, derrubado pelos ventos do temporal. Isso, aliado ao fato de pensar, com angústia, no que o aguardava, o impedira de dormir, por meia hora seguida. E, com a angústia, ele se esquecia de respirar, esse ato para ele tão voluntário como todas as coisas que tentava controlar. De repente, com a interrupção do ar, sentia-se sufocar, com o coração palpitando de tal forma que julgava suas batidas perceptíveis ao vizinho do lado. Então dava um grande suspiro e tentava pensar com mais calma no motivo por que estava fazendo aquela viagem, depois de tão longa ausência. Julgara que o afastamento o colocaria a salvo da saudade, da dor, da impotência de resguardar tudo o que lhe era caro, quando ele na verdade só fazia despertar, de forma aguda e nas horas felizes, esses sentimentos de que um dia tentara se libertar. Talvez a paz de espírito tivesse estado perto de onde julgava mesmo estar o problema, ou talvez essa paz não fosse algo que ele, do jeito que era, achasse digno de atingir um dia, onde quer que estivesse.

Quando o ônibus chegou aos arredores da cidade, notou que tudo estava lá, em seu devido lugar, quase sem mudanças, mas definitivamente perdido. O mal-estar da viagem cessara. No lugar dele, veio uma dor mais concreta e palpável: o sofrimento de não conseguir vislumbrar o mundo sem algo muito importante. Um mundo — o seu mundo — amputado, ao qual faltava um pedaço impossível de ser refeito. Se ao menos ele acreditasse que haveria um depois, algo além, um deus, por assim dizer, ele estaria mais tranquilo, seria até capaz de suportar, mas ele tivera a infelicidade de herdar do pai, aquele pai estranhamente submisso, uma profunda falta de fé. O pai, ao menos, tentara. Esforçara-se para adquirir algo que não tinha, e nunca teria, e por isso ficou louco, murmurando sempre e apenas “por que me abandonaste?” não a deus, mas ao próprio filho. Mas ele nunca teria ido tão longe. O mais longe que fora não era distante de onde sempre esteve. E agora estava de volta.

O ônibus chegou à rodoviária às 9h da manhã. A viagem tinha durado mais do que as dez horas habituais, por causa da chuva que caíra durante boa parte do percurso.

Ao desembarcar, trazia consigo uma pequena maleta, uma garrafa de água e um sanduíche que não conseguira comer. Sentiu-se perdido e, como sempre acontecia nessas situações, só. Apesar de toda aquela gente que movimentava o terminal, ele era incapaz de enxergar alguma coisa. E, mesmo se alguém lhe dissesse “eu o levo pela mão”, ele não poderia ouvir. Tudo lhe parecia abandonado, derruído. Resolveu se sentar um pouco no banco mais próximo da saída a fim de tomar força. Precisava de força, de uma coragem que ele não tinha tido nem mesmo quando partira, há anos. Só hoje se dera conta de que ter ido embora dali não fora um ato de coragem, mas uma retirada desastrada de alguém que, na fuga, deixa cair da valise vários pertences pelo caminho.

Esteve a ponto de chamar um táxi. Tentou fazer um gesto, mas o que seria dele se perdeu no ar. Ficou olhando a fila dos carros, nos quais entravam pessoas cujo destino se ignorava, a quem talvez aguardassem provações mais penosas que a dele. Só ele não conseguia. Ele sabia que era diferente, não para o bem, mas para o mal: era apenas um feto pela metade, que não poderia nunca ter vindo à luz. Diversos táxis partiram levando passageiros, sem que ele se decidisse a tomar um. Chorou impassível como um espectador no cinema que se emociona, com certo pudor, com um drama alheio e fictício. Estava cansado. Não podia se mover. Os pensamentos cessaram e sua cabeça ficou pairando num estranho vazio durante muito tempo. Depois, quase recomposto, olhou o relógio, voltando a si. Já anoitecia. O enterro devia ter terminado. Com esforço, separou algum dinheiro, jogou na lixeira a garrafa de água, o sanduíche e a maleta, e dirigiu-se ao guichê para comprar uma passagem de volta.

Leila Guenther é autora de Viagem a um deserto interior, selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti; O voo noturno das galinhas, traduzido para o espanhol e editado em Portugal; e Este lado para cima. Participou das antologias Quartas histórias: contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa; Capitu mandou flores: contos para Machado de Assis nos cem anos de sua morte; 50 versões de amor e prazer: 50 contos eróticos por 13 autoras brasileiras; Cusco, espejo de cosmografías: antología de relato iberoamericano; Outras ruminações: 75 poetas e a poesia de Donizete Galvão; 70 Poemas para Adorno; Grenzenlos; 69: Antología de microrrelatos eróticos; Blasfêmeas: mulheres de palavras; Transpassar: poética do movimento pelas ruas de São Paulo. Realizou edições comentadas de obras da literatura brasileira e portuguesa. Para os palcos de Robert Wilson, adaptou a peça A dama do mar (edição bilíngue), de Susan Sontag, baseada em Ibsen, e traduziu A velha, adaptação de Darryl Pinckney para uma novela de Daniil Kharms.