não durma agora, conto de André Balaio

Senti um aperto no ombro. Tentei abrir os olhos, estavam colados. A mão insistia. Era ele. Sem camisa, o corpo gordo e moreno. O rosto, dissolvido em suor. Senti um aperto no ombro. Tentei abrir os olhos, estavam colados. A mão insistia. Era ele. Sem camisa, o corpo gordo e moreno. O rosto, regaço de suor.

— Josué falou comigo.

— Sonhou de novo?

— Não, veio aqui e contou tudo. Acabou de sair.

— Contou o quê?

— Foi o tal do Morcego que matou ele. Saíram atrás de mulher, beberam e brigaram.

— Pai, a polícia está investigando. Agora me deixa dormir.

Eu gostava de brincar sozinho no recreio, era franzino, óculos fundo de garrafa. Vinham três ou quatro e me sentavam no lixeiro, formavam um corredor polonês, me lascavam de cascudos e chutes enquanto eu tentava fugir. Às vezes, Josué aparecia e botava todo mundo pra correr, eu morria de vergonha, pedia pra não contar a nosso pai, mas ele contava, ah, ele contava com um sorriso perverso, e quanto mais tivesse estragado o couro dos meninos, maior o sorriso. Meu pai dava parabéns a Josué e me chamava de frouxo, eu me encolhia, entrava no quarto e ficava quieto no canto.

— Preciso fazer alguma coisa. Quando lembro do meu filho debaixo de sete palmos e esse Morcego solto por aí me dá uma dor.

— Mas não sabem se foi ele.

— Você está duvidando de mim, Tiago?

— Não, pai. Licença, preciso dormir, faz tempo que não tenho uma noite inteira de sono.

— Se você tivesse dado uma chance, seu irmão estaria aqui com a gente.

— O quê?

— Isso mesmo que você ouviu: uma chance. Você devia ter ajudado mais.

Quando Josué morreu, tive pena do meu pai. Também senti alívio, claro. Mamãe tinha morrido de câncer três anos antes, depois veio a aposentadoria. O velho, que era de ficar em casa vendo televisão, passou a sair todas as noites. E nas ruas encontrava os amigos do meu irmão, queria saber por onde ele andava, quem eram as companhias, voltava com bafo de cana, coberto de hematomas e desapontamento. Josué aos vinte e quatro era tratado feito adolescente.

— Espere, não durma agora.

— Pai, o senhor está abalado, é normal, não tem nem um mês. Mas eu tenho pouco tempo, vou trabalhar às sete.

Um dia ligaram da polícia para avisar que Josué estava no IML. Meu pai achou que era trote e deu uma risadinha, essa imagem me dói ainda hoje, depois, começou a gaguejar, ficou mudo. Nem na morte da minha mãe estava tão arrasado, ficaria assim se fosse eu?

— Queria te contar uma coisa. Arrumei um revólver.

— Espera. O que o senhor pretende?

— É só para defesa.

— Pai, por favor, prometa que não vai fazer besteira.

— Não fale assim comigo, Tiago. Já vi que você não vai ajudar.

— Ajudar, como?

— Vá dormir.

Capotei. Novamente senti meu pai no quarto. Arfando. Tentei reclamar que ainda tinha alguns minutos, mas ele gritou, ele está aqui, você não está escutando? Ele está aqui!

Não havia nada diferente.

— O senhor teve um pesadelo.

— Não. Você não ouve? Ele está contando os detalhes.

Meu pai derretia, espiava o corredor como se acompanhasse alguém ir embora, ofegava, tremia.

— Preciso resolver isso.

Vestiu apressado bermuda e camiseta, calçou um tênis e pegou a arma. Segurei a mão. Pai, não vá! Ele se soltou e correu para a garagem. Entrou no carro. Arrancou. Atirou-se na noite como quem se joga num precipício.

O telefone tocou. Achei que fosse o chefe, puto por eu ter dormido demais e perdido a hora. Era outra voz, rouca e gentil.

— Tenho uma péssima notícia, Tiago. Achamos um homem no lixão com uma bala na cabeça, tudo indica que é seu pai. Eu sei que é um momento difícil, mas precisamos do reconhecimento…

Desliguei.

Não fui trabalhar, precisava dormir, meu chefe entenderia. Tomei um remédio que me suspendeu no silêncio, distante dos bares bêbados, das casas insones, das ruas putas, dos prédios vivos.

Senti um aperto no ombro. Tentei abrir os olhos, estavam colados. A mão insistia. Era ele. Sem camisa, o corpo gordo e moreno. O rosto, regaço de suor.

André Balaio, natural do Recife, é escritor, roteirista de quadrinhos e editor do site O Recife Assombrado. Teve o conto “O lado de lá” vencedor do concurso internacional Off-FLIP em 2016. Quebranto, seu primeiro livro de contos, foi finalista dos prêmios nacionais SESC e CEPE em 2017 e será lançado no primeiro semestre de 2018 pela Editora Patuá.