ordálias
até que chega a fatura: como uma
música ou um tumor que nasce
do amor e da guerra
o olhar em qualquer paisagem (mesmo
de carne) é também um modo de
despedida. mas nos
enganamos. contra o peso de.
alguém veste sua melhor máscara
boca empedrada em esgar
de riso no meio das silhuetas, da
fileira dos dias, vagões sem
cor. feito moscas. em volta de.
verdades cada vez mais gordas
onde entra a baioneta e o dinheiro
escorre. o sangue escorre. para
a honra de.
o apodrecer de toda sombra
sob a sombra de.
tantas vozes, a imagem talvez
de uma estação de trem
destruída. mil cairão ao teu
lado. dez mil à tua direita. e dentro
de ti muitos mortos. todos
mortos. em nome. em nome de.
coletiva
lamentamos profundamente
o ocorrido. uma sindicância foi
aberta. uma força-tarefa criada.
estamos prestando toda a
assistência às famílias. as doações
ocorreram estritamente dentro
da legalidade. não há motivo
para pânico. precisamos esperar
o laudo da perícia. a população
deve fazer a sua parte. a culpa foi
de uma disputa entre facções.
a situação está sob controle. este
é o nosso compromisso com o
futuro. confiamos nas instituições.
a empresa repudia veementemente
todo e qualquer ato de violência. a
confiança já voltou ao mercado.
as apurações serão rigorosas e os
culpados punidos. não renunciarei.
repito. não renunciarei. trata-se
de um caso isolado. o meu cliente
está de consciência tranquila e
provará na justiça a sua inocência.
esta vitória é de cada um de vocês.
giallo
empunhar o cansaço como
uma espada de iansã, proteção contra
estar dentro de um filme italiano
em que do matador em série
aparecem apenas as luvas pretas
de couro. escolher as armas: livros e
amores (os mais queridos, de segunda
mão), além de imagens riscadas em
sonho, como o olhar de vidro dos
pescadores saudosos de algo que o mar
não devolve. como as guirlandas,
helênias, gérberas e outros nomes reais
ou inventados de flores ou de meninas
assassinadas. você sabe, esta casa
retrocede e dobra e se curva ao sabor
da fuga. só temos que voltar antes que o
filme acabe. por enquanto, pilhar toda
ninharia que componha o paiol – um
coágulo, uma paz tarja-preta, um bestiário
de figurinhas autocolantes, o cheiro
de chuva do seu cabelo. aqui estou,
e precisamos escolher as armas na
pressa, sob o manto protetor do meu
cansaço. há mandíbulas em volta
se fechando em carniça, há um convite.
não há muito tempo. você tem a chave,
mas não é fácil ler as linhas borradas
do seu rosto. daqui parece um sorriso.
Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980 e publicou os livros de poemas Primeiro as coisas morrem (7Letras, 2004) e Nenhum nome onde morar (7Letras, 2014).