Escrito neste papel onírico
feito de vestígios de nuvem
o poema procura não pesar
nem ferir o sono da folha debaixo.
Prefere que transpareça o sonho
a magia que animou a mão
e a elevou, até tocar o céu.
O que pousa nesta página
não marca, nem com a tinta
da pena, a sua face oferecida.
Não marca, mas pretende apontar
o que está atrás da aparência
que o círculo da lâmpada não ilumina
que o aro do sol não queima.
___________________________(o outono é ponte)
___________________________Alice Sant’anna
Estas folhas não numeradas
existem para acolher melhor
qual estágio da expressão?
O do insistente verão que o sol
declama? O da lâmina do inverno?
Ou o das passagens, das pontes
e poentes, do outono e primavera?
A caligrafia busca a beleza
através da letra: traço, volteio
que a mão treinada realiza
dentro da pauta estreita.
Na contramão, a outra, selvagem
tem estilo diferente: livre e preso
no gráfico acidentado dos sentidos.
____________________________p/ Cri
Sua pele, sua palma aberta
aceita minha escrita leve.
Se a força de antes, que calcava
se foi, o que ficou, perto do fim
ainda deseja cobrir, com amor
a distância inconquistável, talvez
por natureza, terra de ninguém.
Que o vento não venha
dar asas às folhas
e não à imaginação, não
as solte dos seus ramos, não
as perca, nem por um segundo
as esqueça, sobre a mesa
sem o peso de um peso de papel.
Não passem, estas páginas, depressa.
Não se perca logo o matiz de sua tez
feito de um flagrante do ar livre.
Fiquem aqui as palavras escritas
resistindo ao desmaio do esmaecer.
A transparência deste papel, pelo
menos, não se rasgará com o tempo.
Armando Freitas Filho nasceu em 1940, no Rio de Janeiro, autor das seguintes obras, entre outras: Palavra (1963), 3×4 (1985), Máquina de escrever (2003) e o mais recente, pela Companhia das Letras, Rol (2016).