1.
a casa sem relógios
a casa não tem relógios
as gotas de chuva
sobre a cama
contam o tempo
não é grande a casa
não tem ecos
os gritos vindos do passado
estão em páginas, sua escrita
que vez em quando eu lia
há um espelho no quarto
que é como o rio de Heráclito
nele, me olhei tantas vezes
e nele nunca vi o mesmo
que olhando me procurava
do outro lado do espelho
há dois corpos num ato de amor
em vez de um fazer o outro doer
estão unidos num só
na casa o tempo está parado
num ato de amor que perdura
entre o antes e o depois da vida
num antes que foi depois
num depois que é duração
2.
paisagem na memória
A saudade aprendeu a
Conservar intacta a paisagem
O verde que era cinza
Queimada à saída da casa
Haverá de conviver
Com essa imagem
E com o medo inútil
De não mais ser sonho
Ir e vir de mãos dadas
Que acalmavam as noites
E ainda que a voz espere
Uma vida inteira
Ostentamos a paisagem
À saída da casa
Como uma porta giratória
Que permanece em qualquer saída
Conservamos intacta a paisagem
Verde que foi cinza da queimada
Mas nunca será intacta sem ti
A esperança que cabia
Na mão que insistia
Soltar a direção
3.
a fonte da quietude
No caminho às águas límpidas das Geraes
Cruzamos uma pequena trilha de areia fina
Lá encontramos a Fonte da Quietude
Uma pequena correnteza d’água
Que escorre nos elos das rimas
Desenhando a forma das pedras:
Trégua e misericórdia do tempo
A água potável da memória
Tem gosto de verdade
Não é preciso bebê-la
Para lavar pensamentos ruins
A correnteza enlaça ecos de palavras
Impalpáveis, mas que não se rompem
A Fonte da Quietude
É lugar de encontro ou despedida
A água do tempo suspendido
Nela escorremos de nós mesmos
Ao lado, meu amor de sol se ilumina
Nas sombras o dia se consume
O sol que aquece o eco das rimas
Se projeta no corpo dela
Como uma ponte
Entre minha queda e minha ruína
Afogada na correnteza, a pedra
Eu me desfiz de mim, na queda
O amor não pode durar
Só o tempo que pudermos dizê-lo
4.
é o amor que faz amar
(Sextina para Juba Maria)
esse amor sem mesura
e que em meu peito dura,
fez dela o meu prazer.
e me praz de morrer
sem sorte ou desventura
se a ela não mais ver.
tão bela fez do Amor
meu querer, sem poder
eu m’ esconder da dor
qu’ é não vê-la, nem tê-la,
dela pude eu aprender
que é o amor que faz amar.
e é tanto o desejar
que dela ter um olhar
me faz tão doce a tarde,
e curvo o meu amor
por ela sem alarde,
sortimento que me arde,
lume da noite mouca,
e a beleza é pouca
Vanderley Mendonça é poeta, tradutor e editor dos Selos Demônio Negro e Edith. Traduziu, entre outros livros, Poesia Vista, antologia bilíngue do poeta catalão Joan Brossa (Ateliê, 2005), Crimes Exemplares, de Max Aub (Amauta, 2003), Nunca aos Domingos, de Francisco Hinojosa (Amauta, 2005) e Greguerías, de Ramón Gómez de La Serna (Selo Demônio Negro, 2010). É autor do livro Iluminuras (Ed. Patuá, 2013).