Oressa,
madrugada e esta dor que gritava eu abandono porque quero mais ouvir do que saber dar nome às coisas, e quero mais estar mais simplesmente. Da música dos horizontes dos invernos dos livros conheço pouco as folhas e não terei a pretensão de lhe mandar um bilhete fosse você a minha comoção eterna não caberia num compasso num suspiro. Se eu abrir um novo parágrafo um parênteses uma gaveta esta garrafa de champanhe a gaivota serena no espaço desaparece
a vaga cobre o penedo é um desastre que espalha gritos e os cogumelos se desintegram e a lua rastejará.
Austro,
você me escreve do lugar mais distante e em língua vulgar em palimpsestos me conta que vive em cavernas de cheiro obsceno posto num gesto esse escrito tem um perfume eu respiro eu conto cada uma das letras eu toco eu danço primavero e sou a embriaguez dos sentidos eu sou nada saber. Você não me escreve jamais eu rasgo as vestes eu grito sem ter dito nem som eu espero na mesma janela que confirma o frio sem azul. Na mesma janela em que essa gaivota fixa que pairava sem mover as asas se desequilibra
a mão em posição do acorde mas de quem suprimiu-se o próximo compasso.
Sim, as aves cantam nesse momento porque será dia Oressa
de novo é um anúncio esta gravação antiga um disco riscado fala do que se pode reviver e eu presto atenção máxima porque cada farelo um contentamento quando encontro quando posso outra vez encontrar. Aqui na abadia na floresta nesta gruna eu passo fome e frio por favor me restitua aquelas noites aqui no claustro na caverna nesta furna o alvorecer se iguala ao sacramento e o falto pulsa e eu quero enterrar meu corpo eu quero escavar a terra e sepultar ali as sombras que insistem.
Não, mensagem nenhuma me traz essa estação Austro
sobra aqui uma abundância de falsias e de invenções que eu construo que eu combino com habilidade de quem professa as flores que se abririam. Veja a precariedade desta melodia ela se desintegra ao tato ela se existe apenas uma única vez. Ela permanece pra sempre — é isto o que me pede? Sem acompanhamento é uma sequência uma linha feita de fugacidade e chumbo. Feita de um papel fino frágil precário quebradiço como a lembrança das ondas como a existência das pétalas esta melodia está doente de si.
Do meu coração que se desmancha em contratempos vem um pedido e eu miro o sol sobre a areia pratica a encomenda dos pulsos. Eu sobre aquela grande pedra na praia observo as cores que ali não estão. O céu é um só sentimento e ali entreguei as armas todas depositei a pele sobressalente as escaras que o tempo cumpriu esculpiu marcou como a ferro planificou. De você nenhuma notícia a não ser nos éolos insúbitos. A não ser no olvido que me trouxe esta fermata e tudo que foi posto ali num rasgo maior e muito mais amplo do que o esquecimento.
O horizonte é imóvel as pedras são imobilidade sem fim as areias o meu olhar neste momento é a eternidade consagrada do real. Como poderia nomear o que me põe em tal estado? Não poderia chamar isto de sofrimento porque as tílias insisteminsistem em serem digníssimas e nisso encontrei entusiasmo e vontade de querer de novo. As palavras que ficaram cravadas incrustadas perenes desistiram. Eu sou a espera e tranquilamente.
Você permanecerá em silêncio eu em descompasso você continuará sendo uma cadência delicada eu o ritornelo insubmisso você se conservará cada um dos grãos cada uma das notas cada uma das lágrimas cada um dos sentidos eu o lapso a ave destituída você o que insiste o modo maior o modo imenso eu a interrupção o suspenso o malcontente o insaciado. Escrevo por palavras cruas faço meu testamento porque a luz não suporta metáforas os graus da escala são desinências são sopros que atinam para o próximo deslocamento. Eu me curvei ao espanto de ter e não ter no infinitivo.
Vespas fizeram ninho na caixa de correio ali não posso colocar as mãos alcançar a infinitude de mensagens suas em frases em significados belíssimos e intensos não posso danificar destruir botar em risco as minhas mãos porque com meus dedos e com aquilo que eles sabem tocar faço a brancura existir e é no seu regozijo que me salvo. Do que este silêncio nos protege? Nas asas nas horas do mais doído estado de ausência de cessação é pelas mãos que encontrarei o caminho do esperançado. Do que me fará me cumprir.
Como as contas do terço eu dou seu nome para cada retalho que toco e repito: lestia, cruviana, aura, cruviatá, gravana, guieira.
Dormi com seus nomes grudados no meu corpo repetindo tocando cada sílaba: samielalíseocansim galerno bóreas favônio zéfiro simum
É quando as palavras não chegam que se compreende
que não se precisa mais delas para saber o quanto
eu quero lhe por aqui.
Luci Collin, poeta e ficcionista curitibana, tem diversos livros publicados entre os quais A árvore todas (contos), Querer falar (poesia, finalista do Prêmio Oceanos 2015), Nossa Senhora D’Aqui (romance) e A Palavra Algo (Editora Iluminuras, 2016), premiado com a segunda colocação na 59ª Edição do Prêmio Jabuti, na categoria Poesia. Participou de antologias nacionais (como Geração 90 — os transgressores e 25 Mulheres que estão fazendo a literatura brasileira), e internacionais (nos EUA, Alemanha, França, Uruguai, Argentina, Peru e México). Também já traduziu Gertrude Stein, E. E. Cummings, Gary Snyder, Eiléan Ní Chuilleanáin, entre outros. Leciona Literaturas de Língua Inglesa na UFPR e atualmente cumpre estágio pos-doutoral na USP.