Para meu velho
Hoje faz um mês que completei trinta e três anos. Abraçado ao Marcelo e à minha mãe, vejo ali a figura do meu pai que me arremessa à infância.
Minha mãe não podia ir à reunião bimestral da escola, treinamento da equipe de dermatologia. Convocou meu pai para a tarefa. Você já foi a todas as outras, não tem problema se a gente faltar nessa. Leonardo faz questão, vai ser a entrega das notas finais. Mas, amor, eu não sei tratar destas coisas. Claro que sabe, homem. É só ouvir o que a professora tem a dizer e pegar o boletim. Não era apenas isso, mas tinha que parecer ao alcance dos sentidos, conhecia o marido mais que ele mesmo.
Orelha colada à porta do quarto, apreendi os nervos da conversa que travaram na cozinha. E meu coração deu sinais de autonomia, um tambor a tocar as aflições do mundo. Contava eu com onze anos e alguns meses. A relação com meu pai? Nada que pudesse constar no Catálogo dos Exemplos Familiares. Era amistosa, respeito e carinho, mas sem a profundidade que havia entre minha mãe e eu.
Na noite anterior à reunião, ela se sentou à cabeceira da minha cama. Eu me acastelei com o gibi do He-Man, conhecia o motivo da visita. Leonardo, seu pai… A desculpa que daria em poucos segundos tropeçava em sua língua. Ele vai se sair bem, filho. E será importante pra ele. Você não imagina o quanto isso está preocupando seu pai. A todo momento ele pergunta algum detalhe sobre como costumam ser as reuniões. Mas, mãe, não dá pra mudar seu treinamento? Eu tentei. Disseram que é apenas uma reunião de escola, que o departamento de dermatologia precisa de mim.
Sim, era apenas uma reunião da escola. Mas a última do ano. Todos os pais, mães, tios e avós que não foram nas anteriores provavelmente estariam nesta. E meu pai iria direto da oficina. Graxa nas unhas, mãos feito um cultivo de calos. O cheiro do trabalho.
Desde o pré-primário ele nos buscava no final da tarde. Há dois anos, todos os dias, esperávamos na esquina de baixo para que nossos amigos não vissem sua roupa encardida e remendada. Nossos, não. Meus. Os coleguinhas do Marcelo, entre sete e oito anos, ainda estavam imunes às sujeiras da aparência. Eu é que não queria que os meninos soubessem que meu pai nos sustentava desamassando carros.
O sol ganhava espessura e eu, com os olhos baixos, mordia e remordia o pão com margarina. Engoli a massa como se, pela garganta, passassem as horas que faltavam para o encontro do meu pai com a professora. E com os outros pais. E com meus amigos. E com a Laura! Se tiver muito trabalho hoje, não tem problema. A mamãe pega o boletim na semana que vem. Já acertei tudo com o Benassi, Leonardo. Às três devo chegar na escola.
Durante a manhã foi como se os ponteiros do relógio estivessem anêmicos, incapazes de desvelar o futuro. Tentei me concentrar nas equações de primeiro grau e progressões geométricas, mas a voz da professora transformava-se em um coral de gargalhadas. Por que trouxe um mendigo na reunião? De Natal, vamos te dar uma cesta com produtos de higiene. Isto é uma caneta, o senhor já foi apresentado? Almocei na cantina. No começo da tarde liguei na oficina. Ele está ocupado, Léo. Mandou dizer que daqui a pouco te encontra na escola.
Três e vinte e cinco. Eu pendurado na janela espiando a sala de aula lotada: os pais perguntavam sobre o desempenho dos filhos, assinavam elegantemente a lista de presença, escutavam os conselhos da responsável por esculpir aquelas almas incompletas. Feliz Natal. Vejo você ano que vem. Comporte-se nas férias, hein!
Quatro e dez. Quatro e vinte. Quatro e meia. Meu peito dava sinais de calmaria quando vi crescer a figura familiar no portão. E cresceu até que teve voz. Filho, chegou um cliente, o Benassi quis me explicar o que fazer na porta amassada do Opala. Como se eu não trabalhasse com martelo e solda desde os quatorze anos! Meu pai entrou, camiseta manchada de graxa sobre o nome do candidato a vereador de anos atrás. A professora, só ela na sala. Entrei atrás arrastando o coração. A Laura já tinha ido.
Também se foram Gustavo e Otávio. Faltava mais alguém? Apertei com força o crucifixo no bolso da bermuda. Boa-tarde. Senhor? Luiz, mas todo mundo me chama de Alemão. Tudo bem com a sua esposa? Sim, sim. Ela teve reunião no hospital. Então, senhor Luiz, o Leonardo é um menino maravilhoso. O senhor e ela, bem, vocês estão fazendo um trabalho e tanto. O velho não sabia onde enfiar as mãos. Nem quando a professora esticou o boletim com um sorriso completo. Lembro-me da feição dela, como se meu pai usasse camisa polo e calça de linho. Lembro-me da feição dele, as bochechas vermelhas, a boca entreaberta. Quando recebia elogios, não sabia escolher as palavras. Olhou para mim, eu estava naquelas íris azuis. Mudas e encharcadas. Ele todo encharcado de um sentimento sólido.
Neste dia, a catarata da juventude pôs-se a cair. Processo lento até que a capa que cobria a visão fosse completamente rasgada. Começamos a conversar sobre as estradas estreitas da vida, foi quando descobri o que havia por trás dos calos e das manchas dele: pai alcoólatra, pouco afeto, infância paupérrima. Abandonou os estudos aos dez anos para ajudar em casa: trabalhou como funileiro por quase cinquenta. Foi num desses papos que meu pai sorriu para mim pela primeira vez com o corpo inteiro. E eu retribuí.
Hoje faz um mês que completei trinta e três anos. Abraçado ao Marcelo e à minha mãe, vejo punhados de terra serem arremessados sobre meu pai. Sinto uma espécie de satisfação como se, depois de feitos os arranjos iniciais, tivéssemos cumprido bem o acordo que a natureza nos propôs. E repito baixinho uma frase que ele disse no dia em que sua mãe morreu: não existe morte pra quem tem lembranças em vez de remorsos.
| conto do livro Amortalha, recém-lançado pela Ed. Patuá |
Matheus Arcaro (1984) é professor de Filosofia, artista plástico e escritor com três livros publicados: Violeta velha e outras flores (Ed. Patuá, 2014), O lado imóvel do tempo (Ed. Patuá, 2016) e Amortalha (Ed. Patuá, 2017). Tem textos no Mallarmargens e na Germina. Além disso, é colunista dos portais Língua de Trapo, Educa Dois e LiterturaBr.