cinco poemas de Francesca Cricelli

é uma longa estrada repatriar a alma

Há que se fazer o silêncio
para ouvir os dedos
sobre o velho piano da ferrovia
é uma longa estrada repatriar a lama
a rota é na medula
descida íngreme
ou subida sem estanque —

demolir para construir
e não fugir do terror sem nome
de não ser contido
apanhado, compreendido
é preciso seguir adiante
no fogo e sem ar
e se a dor perdurar
é preciso ser destemido
para espelhar o rosto
em outros olhos
distantes como num espelho.

azul

Há algo triste no azul dos teus olhos,
algo perdido e infinito neste azul dos teus olhos,
algo de azul
no triste dos teus olhos.
Há algo de teus olhos neste triste azul, algo perdido
no infinito do azul dos teus olhos,
algo infinito no azul perdido dos teus olhos.
Há algo azul
no infinito triste
dos teus olhos
perdidos.

a casa

Que casa há onde não há mais casa?

Abatidas décadas e vidas
agora
tabula rasa
da calçada aos fundos
um só vácuo
espaço aberto
perímetro sob o céu.

Não há mais camélias
nem gardênias
nem flor de algodão a subir os tijolos à vista.
Foi o mundo
e permanecem, à esquerda, os ladrilhos
do banheiro da suíte.

À vista o vazio
a terra vermelha
um só muro no fundo
o fundo do jardim sem jardim
e insiste o musgo,
entre os tijolos,
sobre o rejunte.

Já não há uma banheira verde,
mas há a sombra do verde
último traço da lembrança —
a casa onde nasci.

a última frequência do visível

Quando já não urge ser visto
quando afundamos na observação e no silêncio
e só se escuta o correr do rio subterrâneo em Bologna
abre-se então a violeta do dia
sobre o peito
seus olhos amarelos
suas pétalas resistentes
pura seiva e púrpura
é como a iniciação à rota da seda
como cartas que chegam
e outras que não se inscrevem à tinta
é violeta a última frequência do visível
um hematoma, um coágulo, sangue perdido sob a pele
para além da flor só o raio ultravioleta
que roça a memória lápis-lazúli
do sonho ultramarino

as curvas negras da terra

Nesta madrugada arderam
como a muralha chinesa incendiada de lume
as montanhas da Galícia;

o dorso do dragão em chamas
esteve à espera de um São Jorge aquático que nunca chegou.

Era uma serpente de lava a subir e descer
as curvas negras da terra entre Allariz e Redondela.

Daqui, da ilha de São Simão, ainda
envolvida na bruma tóxica,
sonho a fecundidade do nosso futuro.

A novidade da morte percorre-te
a espinha, brasa gélida
converte-se em pranto mudo o medo
às margens do porto azul dos teus olhos.

Desfaz-se a memória, água adentro.

Tememos a falta do que habitaria o porvir
e então traduzes o que quase sei numa língua desconhecida.

Chove e não posso caminhar à beira-mar
para colher-te o olhar daquela margarida,
Cristo branco, erguida sobre estas pedras centenárias
flor dilatada ao vento com olhar de súplica ao céu
igual os meus pulsos quando, em meu sono, os sorves.

Francesca Cricelli (1982-) é poeta, pesquisadora e tradutora. Publicou Repátria no Brasil (Selo Demônio Negro, 2015) e na Itália (Carta Canta, 2017) e 16 poemas + 1 em Nova Iorque (edição de autora, 2017) e em Reykjavík (Sagarana forlag, 2017), livro mais vendido em todas as categorias na primeira quinzena de outubro da Mál og menning. Organizou as cartas de Ungaretti a Bruna Bianco (Mondadori, 2017) e traduziu, entre outros, Elena Ferrante (Biblioteca Azul, 2016). Doutoranda em Estudos da tradução na USP.