três poemas de Cecília Floresta

amazonas das sete lanças

naquela noite
Mariana atravessou a mesa
me beijou e disse:
vai, Cecília! ser fancha na vida.

a sociedade coíbe mulheres
que amam outras mulheres.
aquela noite talvez fosse tarde,
não houvesse tantas cervejas.

minha cabeça vertiginosa cheia de imagens:
meninas verdes púrpuras vermelhas.
pra que tantas lesbianas, minha Deusa?
resmunga meu coração.
embora as minhas vontades
sejam bastantes & famintas.

a moça de cabelos curtos
do outro lado do vagão
não deixa dúvidas:
gesticula em demasia
teve muitas, muitas amantes
a mulher atrás do livro
No bosque da noite

Afrodite,
por que foi que dividiste?
se sabias que amava demais
se atinavas que não beberia
apenas uma rodada por vez

comprida rua Augusta,
se eu soltasse um “no me gusta”
seria uma rima, e não sapatão.
comprida rua Augusta
da Paulista até o centro
foste muitas vezes
minha única consolação.

eu não devia dizer nada
mas aquela mulher
mas esse tesão
botam a gente chuvosa
como Ângela RoRo nos ouvidos
em domingos
quando é tudo
quase tudo por um triz

taxonomia

resgataram ontem a baleia jubarte
tava assim que nem vi
quem foi que me contou também não sei
dizem moradores de búzios
mui atentos
& prestimosos
carregando nos braços o peso milenar
da baleia

lembrei de mim mesma
ali encalhada na areia
a questionar o próximo passo
não sei o que faço
não sei o que faço
na época o mar me respondia calmo
vaga alguma pra me lavar
antes estivesse na cruz das almas
que jatiúca não dá onda

perguntava o que seria de mim
ou o que seria eu exatamente
arrancava os cabelos no espelho
roía as unhas já muito rentes
não rezava
não pedia
ninguém me socorria
ninguém entendia aquele jeito reflexivo
a maneira como eu te queria

mas daí dei com um nó d’água
redemoinhos
o mar se ergueu em fúria
esse oceano em mim represado
& então vi todas as minhas irmãs
cada uma delas
carregando nos braços o peso milenar
do amor que sinto
o que deu em mim eu não sabia
exatamente
mas parei de roer as unhas

resgataram ontem a baleia jubarte
tava assim que nem vi
quem foi que me contou também não sei
dizem

primórdios

dali, numa idade tenra
mas nem tanto
longe então da inocência pequena
dos menores
eu sentia já corajosas
aquelas mulheres duras por fora
uns rostos também de menina
mulheres que usavam calças
largas camisas herdadas do avô
mulheres que aparavam muito bem
as unhas & as dores do peito

heroínas de submundos
tais senhoras e suas ditosas línguas
me foram emergindo do lado de dentro
onde impera o escuro
mas não a escuridão

vi essas figuras me parindo
me sustendo com o leite
de seios fartos & generosos
fui embalada por braços fortes
& mãos delicadas
educada em extenso vocabulário
por dúzias dessas mulheres
que formavam, todas elas
a figura sublime de uma mãe
única & zeladora
pouco rígida, mas de pulso firme

nasci, assim, não do barro bíblico
tampouco de sua costela, Adão
mas do campo das ideias
& também logo após
aquele beijo demorado de Mariana

| do livro cunilíngua, no prelo |

Cecília Floresta nasceu na capital paulista em dezembro de 1988. É graduada em Letras pela PUC-SP, ganha a vida editando livros e não passa sem amores ou literaturas — com apreço especial à brasileirada contemporânea. poemas crus é seu primeiro livro, publicado pela Editora Patuá em 2016.