Quando a noite cobre a pele dos bovinos,
quando há lâmpadas acesas nos olhos límpidos dos gatos
e os santos incendeiam no espírito das vespas,
quando a casa é uma campânula de vidro
ou uma estufa de sinistros girassóis
e os mortos teimam em roer o luto branco das cortinas,
quando te peço que apazigues o pássaro,
esta pomba apoteótica ensanguentada entre os meus dentes,
é então aí que os dedos brilham no milagre
e que me varres todo o pó aracnídeo dos cabelos
e que nomeias estes ganchos que trago à volta da garganta
como lâminas de talho, as leves facas assassinas.
É então aí que me enxaguas os dois pés embrutecidos
de palavras
com uma água tão salvífica, uma vara de vedor
para que eu possa levitar sobre este círculo de silêncio
à semelhança de um mártir que adoecesse entre os espinhos
com rosas atravessadas no hálito.
É que eu trago uma coroa a arder de larvas na cabeça
e quando a noite abate os ossos sobre a cama
e há raízes claustrofóbicas rasgando-se na boca
e vultos lívidos atravessam as paredes com seus vestidos
espartilhados de desastre,
todas as portas se abrem à passagem deste grito,
todos os cabos mais elétricos se dobram,
todas as aves se levantam ao som cardíaco dos tiros,
todos os galos alardeiam a erva húmida do medo
e a minha língua, doente, é uma chaga em assobio.
Luiza Nilo Nunes nasceu em 1989, em Porto Alegre, e vive em Portugal desde a infância. É licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Mestre em Estudos Editoriais pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro. Escreve poesia e ficção. É editora da revista literária Tlön e alguns dos seus poemas estão publicados em revistas físicas e digitais.