— Será que eu digo exatamente o que você entende? — perguntei a Yasuko, de repente, cortando o passeio em duas metades.
Ela continuou pedalando e eu também. Não era nada tão urgente nem importante a minha pergunta que precisasse ser respondida em pé. Ela um pouco à frente, eu logo atrás. Estávamos perto do hospitium. Nunca a gente ia muito longe; Yasuko temia não conseguir voltar a tempo de preparar o jantar — o sushi.
— Entendo você mesmo se não disser nada — respondeu.
Yasuko tinha um inglês precário, mas a simplicidade com que manejava o pequeno recurso era um encanto que significava. Eu entendia em troca o que ela tentava dizer.
Naquela manhã, ela me convidara para visitar a senhora que vendia cartões com desenhos de Anton Pieck. Yasuko comprava os desenhos e depois cortava com uma navalha os vários postais iguais — criava um efeito em 3D. Depois, montava os quadrinhos. Me ensinou que aquilo se chamava découpage. Não enfeitava a casa com eles por medo de o marido reagir. Depois de montar, ela enfurnava a produção de arte em malas. Algumas já estavam prontas desde sempre, porque desde sempre eles pensavam em voltar para o Japão. Acho que o marido jamais viu sequer um dos quadrinhos pronto.
Chegamos. Estacionamos as bicicletas. A casa da senhora era uma linda residência holandesa, destas que não pertencem a ninguém, só aos nativos. Talvez não fosse assim, mas meus poucos florins me conduziam sempre ao pior pensamento de falência, o que me excluía das residências oficiais.
Fomos apresentadas a uma escadaria de boas-vindas. Eram casas-moinho. Entramos em um quarto-sala-oficina. Fiquei parada, entre desenhos tão lindos. Enquanto isso, Yasuko escolhia os postais.
De que Holanda falava Anton Pieck ainda não sabia. Cenas românticas, cheias de crianças rosadas, homens e mulheres elegantes de chapéus; carruagens cortando ruas de pedra, barraquinhas iluminadas que vendiam frutas e doces, cenários parrudos de neve, muita vida dentro dos pequenos mundos ilustrados. Aquele romantismo deveria existir em algum lugar para alguém. Certamente não para Yasuko em sua rotina de marmitas e ferros de passar. Talvez por isso ela gostasse tanto dos desenhos e ficasse tão imersa nos recortes, seus olhos pequenos esmigalhados na concentração para cortar a linha certa e não os dedos.
Yasuko comprou alguns desenhos que serviriam para matar o tempo da noite. O trabalho com os recortes iria encher as horas em que o marido esvaziava o mínimo cômodo com o silêncio de edredom branco quando ele chegava do trabalho.
Encheu de postais caros a sacola que a senhora lhe oferecera. Sorriu gratidão como se a senhora tivesse dado os postais e não cobrado uma fortuna por cada pedaço de papel colorido que, segundo a própria, tinha muito valor porque Anton Pieck desenhou a mais linda e valorosa Holanda.
Achei tudo bonito realmente, mas jamais me ocorreu cortar postais. Eu fatiaria meus dedos um a um logo na primeira tentativa. Desde o início, já me faltava concentração.
* * *
Com a sacola pendurada no guidão, Yasuko saiu na frente e eu logo atrás. Voltaríamos de nosso passeio a tempo para que ela pudesse preparar o jantar ao gosto do marido faminto. Ainda era resto de verão, e o céu estava manso. Íamos pela ciclovia sem fim, margeada por poucos prédios e algumas casas de ninguéns — seriam todos holandeses?
Eu estava inteiramente dispersa, olhando para dentro das salas, quartos e cozinhas. Tinha muita curiosidade em saber quais eram os ninguéns que moravam lá dentro, mas via só vultos porque íamos depressa e não dava para estacionar, fazer um pequeno tour em cada janela e descobrir o que comeriam e qual seria a cor do pijama da noite.
Foi quando aconteceu de eu cortar um carro ao meio — tive esta impressão. Não vi o sinal vermelho, avancei e fiquei a milímetros de distância do carro; eu e a máquina quase nos atravessamos. Yasuko ficou e eu fui, olhando para os lados, me imaginando dentro das casas, sentada na mesa de jantar com desconhecidos, em vez de olhar para a ciclovia, me sentar com o corpo inteiro na bicicletinha verde.
A motorista do carro freou com raiva. Não tinha acontecido nada comigo, mas talvez a lataria dela tivesse arranhada. Eu fiz que fui embora, mas precisei voltar; fiquei com medo de a polícia chegar e me carregar algemada. As bicicletas são veículos como qualquer outro e eu tinha cometido um delito grave.
De cabeça baixa, voltei. Yasuko me olhava com cuidado.
A motorista me esperava fora do carro, já fazendo a vistoria dos possíveis estragos.
Quando consegui levantar a cabeça, dei de cara com a raiva dela. Eu estava tremendo também a língua, não conseguia falar nada. Mas pude ver o carro. Não havia nada. Nenhum arranhão que justificasse a cena instalada no meio da rua. Ela perguntou onde eu morava. Sacou de um bloquinho e começou a anotar.
Tive muito medo. Para que aquele endereço?
Dei o número errado do prédio. E fingi que a perna doía. Era o jogo ao contrário. Se alguma coisa tivesse me acontecido, a culpa era da mulher que provavelmente teria empurrado o carro em cima de mim — eu diria isso a meu favor. Então, prevendo minha confissão falsa, ela resolveu trocar a raiva pela solidariedade e me perguntou se eu estava bem, disse que não, que a perna doía. Yasuko, parada na esquina, deve ter acreditado, porque apiedaram-se de mim seus olhos minúsculos. Bastou aquele pequeno teatro da perna para a motorista antes com raiva encerrar ali a conversa e guardar o bloquinho.
Eu tremia com medo da polícia e também por mentir uma dor. Eu não tinha nada, sequer um dedo mindinho latejando. O carro seguiu e nós também. Yasuko na frente, suas mãos muito calmas me perguntaram com um toque nos ombros:
— Tudo bem?
— Não, estou nervosa.
Seguimos emudecidas o caminho inteiro da volta. Não sei por que motivo fiquei tão apavorada, mas demorou até que eu pudesse voltar ao meu eixo, se é que eu ainda tinha algum.
Yasuko respeitou meu silêncio, mas sabia que eu não estava bem. O carro que eu tinha cortado ao meio com a minha bicicleta tinha me cortado de volta. Não foi o carro em si, mas a raiva no rosto da holandesa que me estraçalhou. A raiva dela anotando meu endereço no bloquinho foi uma paisagem difícil de apagar.
A primeira vez que chorei naquele país: meu batismo.
* * *
Chegamos cedo, não tinha escurecido ainda. Estacionamos as bicicletas e voltamos para casa. Parei no meu andar, Yasuko subiu. Fiquei na cozinha totalmente apática. Não sabia o que pensar. Os acontecimentos na Holanda tinham uma dimensão diferente, os fatos pesavam mais do que o normal. Um incidente de rua não era um episódio prosaico, mas uma tentativa de assassinato. Não sei bem se era isso, mas eu me sentia mal – talvez por errar em um país onde a agenda pede silêncio e acerto.
Eu estava assim, trocando um pensamento pelo outro sem conseguir escolher qual era o mais adequado ao sentimento da hora quando a campainha tocou. Perguntei quem era. A voz pequena do outro lado da porta respondeu:
— Sou eu.
Yasuko. Segurava um prato coberto por um guardanapo que parecia pano bordado. Ela disse:
— Fiz para você.
Eram os bolinhos de chuva de que eu tanto gostava. Na verdade, bolinhos que pareciam os de chuva. Um doce que eu tinha comido em um quiosque de rua, assim que cheguei a Amsterdã. O doce mais gostoso do mundo. Me enchi de alegria. Rimos juntas ali, em pé, de frente para cozinha, as duas segurando o prato ao mesmo tempo.
Ela entrou, a gente ficou na cozinha devorando os bolinhos naquele entardecer. Eu me esqueci da cara de raiva da motorista e de que quase fui arrastada, algemada, para a delegacia depois de cortar um carro ao meio com minha bicicletinha verde.
Yasuko ria baixo com seus dentes tortos e dizia só o necessário – ela dizia sempre tudo o que eu precisava ouvir, não havia palavra sobrando, nem que ela quisesse – tinha poucas. Eu perguntei por que motivo ela colocava a mão na boca para sorrir. Ela disse: japoneses fazem assim. E disse mais:
— Outra coisa que fazemos é não dizer jamais a palavra “não”.
— Como assim? Viver sem negar? — perguntei.
— Sim.
* * *
Depois de quase uma hora, esvaziamos o prato, comemos até os farelos de açúcar. Ela deixou o guardanapo bordado que não usamos de tão lindo. Subiu depois já bem atrasada para o preparo do sushi.
Fiquei na cozinha o resto da tarde quase noite pensando no meu postal favorito, minha paisagem Anton Pieck: Yasuko com o prato de bolinho que parecia os de chuva nas mãos.
Minha Holanda era também romântica.
Claudia Nina é Jornalista e doutora em Letras pela Universidade de Utrecht, na Holanda, com tese sobre Clarice Lispector, publicada pela Editora da PUC-RS (A palavra usurpada). A barca dos feiosos foi seu primeiro infantil (Ponteio). Pela DSOP, lançou Nina e a Lamparina. Publicou o perfil biográfico ABC de José Cândido de Carvalho (José Olympio), os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio de Literatura 2015, o livro de resenhas Delicados abismos (Oito e meio), entre outros. Participou ainda da antologia Escrever Berlim (Nós), organizada por Leonardo Tonus, professor na Universidade da Sorbonne. É colunista da Revista Seleções (Reader´s Digest), na qual assina a coluna de crônicas Papo de livro.