1.
Eu sou o que restou de todas aquelas inúteis tentativas de suicídio. Ainda posso sentir o cheiro da enfermaria daquele hospital psiquiátrico. No leito ao lado, um japonês com uma orelha partida ao meio matava o tempo com caça-palavras. Havia pilhas de caça-palavras na sua mesa de cabeceira. Eu me contentava em olhar para a janela. Não dava para fugir dali. No máximo, eu quebraria as duas pernas e amargaria mais alguns meses naquele maldito lugar. Eu não tinha tanta certeza se queria encarar novamente o mundo lá fora. Os loucos eram os mesmos, só que sem prescrição médica. Procurei algum pássaro na paisagem. Eu precisava sentir alguma presença não-humana naquele lugar insólito. Ver alguns vermes devorando um pedaço de carne podre já me ajudaria, mas só haviam moscas. Várias moscas circundando nossas cabeças. As moscas, testemunhas oculares de toda a nossa miséria. Estão conosco desde o dia em que Napoleão invadiu a Rússia. Ou desde o dia em que Jesus ofereceu a outra face. As moscas carregam em si todo o prognóstico de insanidade da raça humana. Elas sentem de longe o nosso cheiro de merda, por isso nos espreitam, chegam mais perto, pousam sobre nossa carne, esfregam suas patas e logo vão embora. Não passamos de mero objeto de uso e desuso para elas. Algo podre demais para tamanha proximidade.
2.
Quando completei dezoito anos, ganhei uma câmera filmadora do meu avô. Último lançamento do ano de 1996. O velho sabia do que eu gostava. Comecei filmando de forma amadora. Casamentos, festas de debutantes, aniversários, velórios e até orgias carnavalescas. Foi numa dessas que conheci o Lindomar, diretor de filmes pornôs de uma produtora local. Entre um chopp e outro, ele me contou que o seu antigo cinegrafista havia pedido demissão e entrado para a Assembleia de Deus. Me senti intimado. No outro dia haveria uma gravação com a famosa Raquel Blond, e ele me garantiu um bom pagamento. À tarde, estávamos todos no set de gravação. Inclusive o marido da Raquel, um office-boy que sempre largava o serviço para acompanhar o trabalho da sua esposa. A cena seria gravada com o Jair Madureira, ex-pedreiro que havia sido descoberto pelo Lindomar durante a reforma da sua casa de praia. Eu já dominava aquela câmera, e até ajudava Lindomar dando pitaco nas melhores posições e enquadramentos. A cena corria bem. Lindomar se empolgava. “Isso, é assim que eu quero: HARDCORE, PORRA!”. Até que algo saiu do lugar: um beijo de língua entre Jair e Raquel tirou o office-boy ciumento do sério. “Ô, Lindomar, beijo de língua já é demais, né? Tá de sacanagem!”. A porrada comeu solta no set de gravação. Jair armou um soco no office-boy, mas acabou acertando o olho esquerdo de Raquel. O office-boy não deixou barato: devolveu o soco no Jair, mas acabou acertando o meu queixo. Corpo para um lado, câmera para o outro. Maxilar deslocado. Câmera estilhaçada. Peguei a minha mochila, recolhi os restos mortais da câmera e me mandei daquele lugar. No caminho de casa, tirei a câmera da mochila e arremessei ela na primeira lata de lixo que encontrei pela frente. Olhei ao redor, e a cidade parecia uma grande betoneira traçando pessoas com seus sonhos fugazes. Dali em diante, eu faria questão de manter tudo perdido como sempre estivera.
3.
Conheci Danusa ainda na cadeia. Ela estava cumprindo pena por tráfico de drogas. Eu estava apenas desentupindo a fossa da ala prisional onde ela se encontrava. Uma bela argentina com os olhos mais azuis que eu já vira. Fumava de forma compulsiva. À cada novo cigarro que tirava de dentro do bolso de seu moletom, me pedia o isqueiro e um beijo seco. Certo dia, lhe concederam habeas corpus. Fomos direto para a minha quitinete. Trepadas ao relento. Ela pensava em voltar para La Plata. Eu pensava em dar um tiro na têmpora. Negamos nossa própria redenção. Não me contentaria em vê-la debruçada sobre a janela vendo o sol pratear o rio todas as manhãs enquanto as fossas do presídio feminino me esperavam transbordantes. Não demorou muito para ela ir embora, levando todo o meu dinheiro e quebrando tudo o que havia naquele minúsculo cubículo. Eu a entendi. O tal estado natural das coisas. Talvez ela soubesse que eu precisava me enxergar nos estilhaços do espelho espalhados sobre o chão da sala. Talvez ela soubesse que eu precisava daquele desencontro para alimentar todas as lembranças fugidias que viriam depois.
Giordano Andriola, potiguar, nascido em 1990. É autor do livro de contos Memórias Pútridas de um Voyeur Cego (Appaloosa Books, 2017).