1.
Tenho uma linha de giz
traçada ao redor do coração
um arbusto frondoso
cinge meu pescoço
e na boca, o canto
dos lobos tristes da floresta.
No meu dorso dormem
junto comigo
cobrindo-me como um manto
as asas fechadas de um anjo.
Espero sair indene
dessa branca noite espectral.
2.
a rua bate com força no rosto
vem ao meu encontro não
sei nada sobre ela nem
sobre mim porém
sem pudor nem meio termo me toma
no cerne das horas e me leva
e carrega meu pensamento
até que me torne multidão
e enquanto suo e ando e estou
cansada, a rua me revela seu esplendor
no osso roído do asfalto
3.
Temos pele de vidro
e desejo de sobra
resta saber se não trinca
a pele sob a mão e seu tato:
as carícias como peixes
cobrem-nos de escamas.
Temos sorrisos e vidas
emolduradas
caso seja necessário
substituir meu vazio pelo teu
e enfiar-te no meu mundo
como roupa nova.
Temos palavras prontas
e livros que embelezam as estantes
caso seja necessário
inventar uma nova sabedoria
uma mera troca, rápida
como apertar essa tecla
e tudo deletar.
4.
a rua é quem esbarro
a fruta jogada no canto da calçada
a sola do pé que arde a dor
colada no asfalto
a esmola que resvala
na memória
a marquise onde me estreito
para que outros se acomodem
comigo
nessa ausência de nós
dentro da tarde
a rua é esse recorte e colagem
do olhar,
um super-homem de plástico
sem perna
afogado no bueiro
uma flor vermelha
que estoura nas grades
a rua é quem onde
agora
não sei
ou talvez amanhã
quem sabe
persiste
entre a poeira e o espanto
5.
Descamamos a espera como quem revolve a terra.
Há sempre dois itinerários sob o mesmo sol.
Tenho meu exílio camuflado dentro do teu
mas sem resíduos nem colírios
somos essas borboletas
penduradas às paredes
as mais belas e azuis
já sem força para voar.
Esprememos as palavras como se delas saísse remédio
mas estas são apenas palavras.
| do livro Animal extremo, Editora Patuá, 2017. |
Prisca Agustoni nasceu na Suíça e mora no Brasil desde 2003. Traduz do italiano, do francês e do espanhol, é professora de Literatura Comparada na Universidade Federal de Juiz de Fora, cidade mineira onde reside atualmente. Ensaísta, prosadora e poeta, integra o comité científico de vários festivais literários na Suíça e de revistas, além de escrever e publicar sua obra em italiano, francês e português. Recebeu em 2014 a Bolsa do Governo Suíço para a criação. Lançou este ano no Brasil os livros Casa dos ossos, pela Editora Macondo, e Animal extremo, pela Editora Patuá. Textos seus inéditos serão debatidos no começo de 2018 no Festival Literário Suíço de tradução, Bieler Gespräche/Rencontres de Bienne, no Instituto Literário de Bienne, na Suíça.