cinco poemas de Fernanda Morse

mais verde que as ervas eu fico

Is bliss, then, such abyss
I must not put my foot amiss
For fear I spoil my shoe?
(Emily Dickinson)

é
melhor mesmo
ficarmos por aqui
não é um abismo — não é
a resposta divina ao incêndio das bestas
são nossas mãos que alcançam nossos corpos
nossas palavras de lesma em prato de folha
como aceitá-las
se nelas não há sequer um lugar
para o genuíno?
(quanto de mim passou pela sua boca
que eu também não gosto)
como
ouvir besame mucho
sem quebrar a louça a cozinha sem rachar os dentes e como
tantas vezes despencamos por tão pouco
como estar agora
sem me atracar
ao seu corpo — eu olho
ele dorme ainda
não
encontramos ao certo nosso herbário
enquanto sonhamos os livros de botânica
sobre a mesa posta do café da manhã.
amassado e mais verde que as ervas porém
muito mais ingênuo do que safo
ele escorrega
pela quina da porta
e vai

destruição do boy

You cannot solder an Abyss
With Air.
(Emily Dickinson)

eu não te suporto e não suporto
a energia gasta em preencher
vazios que você me deixa
eu não te suporto tampouco teu corpo
te suporta porque é de plástico
e rejeita
a tessitura dos eventos, da vida
regurgita
tão grande oferta
que vem de dentro expondo
até o osso
porque teu corpo é uma cova e não posso mais morrer ali
num destampado de pedra tão oco
é sempre tão pouco exceto quando viramos a chave
ao contrário
quando tontos nos dispomos ao espelho
e observamos a casca a carapaça
do teu esqueleto quase tão próximo
do meu — mas não!
outra vez o engano — eu já não sei
da matéria que me contempla?
e não te suporto
porque não é inteiro
entorta
com um mínimo tropeço
empena
como uma porta
vagabunda
que insiste em ficar
entreaberta

objeto de estudo

I
ainda devo
alçá-la para além
da insônia
mas esse cara
e o breu
da sacada
não permitem que eu
voe
devo alçá-la mesmo
no breu
é no escuro que escrevo
não há o que se ver para além da dança
os dedos pendem a cabeça
arde a pele roça
o papel
devo alçá-la aqui mesmo
quando
como quando dois amantes hesitam e
estudam seus corpos
no breu

II
de fato eu ensaio
essa pegada
como se fôssemos
mais que amigas
te vasculho como vasculho
as meninas que desejo
te vasculho protegendo
o mistério que mantém
a vida tesa

sweet sucker dance

lembra
da lesma?
dança
fodida
e translúcida
púrpura
rosa e azul
flutuantes
eram duas
mas era um
órgão
não era nós não
eram elas
muito
maiores
por cima
e por dentro
do galho
crescendo
feito árvore na árvore
a coisa na coisa
irmã
não
não era nós mesmo — esse abismo.

bom retiro

agora serei leve
ganharei o ar
e o ruído
a fissura
destas paredes novas
distrai o vazio
destas mobílias todas
estranhas
e acordar dentro delas —
a solidão
destoa
de toda a proposta
da sorte, do peixe chinês
inquieto, pendurado
na varanda
um teto todo meu e no banco
um fantasma
na fronha
um fantasma
mas às vezes
por dentro acontece de ser
dia, como é lá fora
e brilha
entre os cacos de espelho na calçada
uma vontade de existir e voltar
à rua e ver
velhinhos coreanos
lambendo uma casquinha
de baunilha
eles só ficam ali
calados
e entre uma lambida e outra
o dia passa
sem ele
por aqui

Fernanda Morse (1996) nasceu em Niterói e hoje vive em São Paulo. Estuda Letras Português-Inglês na USP e escreve. Publicou seu primeiro livro em 2014 pela Coleção Kraft, da editora Cozinha Experimental. Em 2015, lançou os “impossíveis” pelo selo Cactus. Site: Perto Vermelho.